Diário de Notícias - 22
Nov 06
A autópsia do
Tioneu
Vasco Graça Moura
Num site do Ministério da Educação (http/www.dgidc.minedu.pt/
TLEBS/CDMateriaisDidacticos/ trabalhos/90_Lusiadas
_3C.ppt), pode encontrar-se a TLEBS [Terminologia
Linguística para os Ensinos Básico e Secundário]
aplicada à análise de uma estrofe de Os Lusíadas
(II, 12), destinada aos alunos do 9.º ano e
qualificada como "corpo linguístico ambíguo". O
facto de o ministério ter acolhido o trabalho feito
numa escola básica na sua página da rede fala por
si.
A estrofe é esta: Aqui os dous companheiros
conduzidos / Onde com este engano Baco estava, /
Põem em terra os giolhos, e os sentidos / Naquele
Deus que o mundo governava. / Os cheiros excelentes,
produzidos / Na Pancaia odorífera, queimava / O
Tioneu, e assim por derradeiro / O falso Deus adora
o verdadeiro.
Depara-se-nos logo o fac-símile de duas páginas do
Canto II da edição de 1572, com o terrível azar de
não figurar aí a estrofe em questão... São
reproduzidas as n.ºs 63 a 68, não se percebe porquê.
A análise tem coisas extraordinárias. Alguns
exemplos:
1. Afirma-se que "o nome próprio Deus nos surge em
três posições ambíguas. A primeira é naquele Deus
que..., "pressupondo a existência de outros, o
que o torna comum e lhe retira o carácter de
entidade única".
Acontece que o nome Deus surge apenas em duas
posições. E se, na terceira, está implícito, não
está como nome. Em vez dele está o pronome "o"
[verdadeiro].
A expressão "naquele Deus" não o dessingulariza. Não
pressupõe, antes exclui a existência de
outros. Basta ler. É um mero expediente enfático e
métrico.
Não há qualquer ambiguidade. Deus não é contraposto
a outros deuses em termos equívocos. Quando muito,
ambíguo seria o verbo no imperfeito do indicativo
("governava", em vez de "governa"), por razões
de rima, e isto é que devia ser explicado...
Diz-se também que a segunda e terceira posições da
dita ambiguidade do nome próprio Deus estariam em "falso
Deus" e "verdadeiro [Deus]".
Volta a não haver ambiguidade: um é falso e o outro
é verdadeiro... Aliás, se ambiguidade houvesse,
haveria que explicar, em termos empsonianos, que a
incerteza ou sobreposição de sentidos funcionaria
como recurso de intensificação do efeito poético e
da ironia.
2. Pancaia é o nome de uma ilha utópica no Oceano
Índico, imaginada por Evémero de Messina (séc. III
a. C.). Havia nela árvores de incenso e outras
essências vegetais próprias para rituais religiosos.
Daí, "os cheiros excelentes, produzidos na Pancaia
odorífera" e queimados por Baco. Mas lemos: "o nome
próprio Pancaia assume também valor de nome comum
devido à presença do determinante demonstrativo
'...aquela', constituindo assim uma perífrase de
'Ilha'".
Isto continua a ser puro dislate. Mas o mais bizarro
é que o tal determinante demonstrativo "aquela" com
tão mágicas e sofisticadas propriedades, NÃO SE
ENCONTRA na estrofe analisada!!! É forjado para fins
da análise e isto é verdadeiramente grave... E mais
grave ainda é o ministério avalizar esta enormidade!
3. Mas há outras coisas pungentes. Noções
reaccionárias como sujeito, predicado, complemento
directo, complementos circunstanciais, dão lugar a
embrulhadas rebarbativas que, do ponto de vista da
aprendizagem dos jovens, não adiantam absolutamente
nada.
Basta ver como os complementos "...em terra"
e "... os giolhos" são descritos. Para o
primeiro, temos: "núcleo de um complemento
preposicional em posição pós-verbal, constituindo
uma unidade sintáctica que serve de locativo à forma
verbal põem" e, para o segundo: "núcleo de um
grupo nominal que constitui o complemento directo da
expressão predicativa anterior". Por sua vez, "... e
os sentidos naquele Deus que..." é explicado
como "núcleo de um grupo nominal equivalente ao
anterior, regido pela conjunção copulativa e
que o transforma em complemento directo da expressão
predicativa formada pela forma verbal põem".
4. "... produzidos na Pancaia odorífera..." é
apresentado como "núcleo de um complemento
preposicional seleccionado pela forma verbal
'produzidos' como argumento indispensável". O
que é que um aluno vai compreender quanto ao
argumento indispensável? De resto, pôr os joelhos
em terra e produzir na Pancaia é assim
tão diferente? Na Pancaia já não serve de
locativo à forma verbal produzidos?
5. "... os cheiros excelentes" acarretam o
odor evanescente de um "núcleo de um grupo nominal
com função de complemento directo e um Modificador
adjectival, em posição de atributo"...
6. "... com este engano Baco estava..."
explica-se como "verbo copulativo aqui a assumir um
valor absoluto ao dispensar o nome predicativo do
sujeito - predicado de uma unidade de hierarquização
também secundária". Como é que os alunos vão
entender que, muito simplesmente, aquele "Baco
estava" quer dizer "Baco encontrava-se ali"?
7. "... e assim por derradeiro, o falso Deus
adora o verdadeiro" dá lugar a esta trapalhada:
"Predicado da frase que constitui uma oração
coordenada copulativa/conclusiva (ligada à
anterior pela locução conjuncional e e o
conector de valor conclusivo assim)". Parece
que toda a frase é o "predicado da frase"?
E o que será pegar em todos os dicionários e onde,
na entrada "assim", vem indicado advérbio,
alterá-los para se incluir "conector de valor
conclusivo"?
8. "Por derradeiro" implica a seguinte
explicação deveras transparente: "complemento
preposicional aparentemente modificador do sujeito
'falso Deus' no que constituiria uma oração
subordinada causal. Na verdade, no contexto, a
expressão indica 'Por fim; finalmente' e reforça o
valor conclusivo dos elementos anteriores". Quer
dizer: formula-se uma hipótese desnecessária, antes
de se dar a informação correcta...
Disto se vê como até os professores se enredam nas
suas próprias confusões. Escapa à minha obtusidade
como é que miúdos de 14 ou 15 anos, ainda por cima
mal preparados, vão perceber tudo isto e muito mais
nos 45 minutos que são expressamente indicados para
a análise em questão. Não lhes chegará todo um ano
lectivo à roda desta oitava camoniana!
Com a TLEBS, descobriu-se a maneira de reduzir o
estudo de Os Lusíadas no 9.º ano a uma só
estrofe das 1102 do poema. Coitado do Tioneu!
O ódio à Literatura atinge o seu paroxismo nestes
modelos de autópsia.
Acuso deste crime o Ministério de Educação.