Público - 24 Mar 06

Crónica de uma petição "irrelevante"

António Pinheiro Torres

O que é o embrião humano? Podem ser criados em laboratórios, sem restrições? Pode uma criança ser concebida e nascer sem conhecer o seu pai biológico? Admitimos o comércio de óvulos e de esperma?

São milhares de nomes e números de bilhetes de identidade. Saem dos envelopes, pequenos ou grandes, chegados ao apartado de correios. Muitas folhas, uma só folha. Total ou parcialmente preenchidas. Alguns cheques e uma ou outra nota solta. Um euro vindo de Bragança. A correspondência que acompanha as folhas de assinaturas é escassa mas variada. Cartões de felicitações e uma extensa carta de um funcionário das finanças reformado. A proveniência é do país inteiro, de Norte a Sul, do continente às ilhas. Mal sabem estes milhares de cidadãos que, de acordo com o ministro da Saúde, o seu esforço é "irrelevante"...
Andaram por cafés e bateram à porta dos vizinhos. No bar da universidade e à porta da igreja paroquial estiveram a recolher assinaturas. Passaram uma tarde na academia recreativa por entre a mesa de jogo e a de bilhar. Aproveitaram um baptizado do sobrinho e a reunião de pais da secundária. Deixaram uma folha no padeiro e outra na loja dos agricultores. Convocaram uma reunião dos de sempre para planear outra recolha de assinaturas, desta vez, no centro comercial da vila. "O senhor prior foi aos da missa, eu fui aos outros", contava um presidente de junta de freguesia. Tanto tempo despendido por uma petição, para o senhor ministro, "irrelevante"...
Responder aos jornalistas que perguntam quantas assinaturas temos. Telefonar ao médico ou ao jurista para assegurar a sua presença numa sessão de esclarecimento. Responder no telefone de campanha a dúvidas. Combinar o envio de material de informação. Alguns milhares de cartas para pôr no correio. Duzentos mil folhetos para distribuir. Centenas de folhas de assinaturas que é sempre preciso ter disponíveis. Seleccionar e conferir os textos do site e verificar a sua colocação. Ler a imprensa e comunicar o que sai. Almoços de trabalho na sede e reuniões ao fim da tarde. No fim-de-semana partir para Albergaria, Guarda, Ribatejo, Caldas da Rainha, Loulé e Viana do Castelo. Salas cheias de pessoas desejosas de saber o que se passa. Quanta tarefa, para o senhor ministro, "irrelevante"...
O que é o embrião humano? Podem ser criados em laboratórios, sem restrições? Será legítima a "barriga de aluguer"? Pode uma criança ser concebida e nascer sem conhecer o seu pai biológico? Admitimos o comércio de óvulos e de esperma? O embrião humano pode ser usado para experimentação científica? O uso da procriação artificial pode ser só para casais ou também para pares de homossexuais? Deve ser deixado ao critério dos médicos quantos embriões são criados? A decisão sobre estas e outras matérias deve ser deixada à Assembleia da República? Mesmo sem que os partidos nas últimas eleições tenham dito o que tencionavam fazer quando se discutisse esta lei? Quantas questões estas, objecto de uma petição, para o senhor ministro, "irrelevante"...
Vejo as folhas de assinaturas empilhadas na mesa de trabalho. Passo o olhar pelos sacos em que se guardam os envelopes onde elas vieram. Espreito os post-it com os contactos e um ou outro cartoon afixado na placa de cortiça. Verifico o carregador do telemóvel e espero que a impressora descarregue o nosso próximo comunicado. E penso se o ministro da Saúde se dará alguma vez conta do que representa para neste momento 30 mil portugueses, subscritores de uma petição a favor de um referendo sobre a procriação medicamente assistida, que a sua opinião seja considerada "irrelevante"...
Será que o povo na democracia, para o senhor ministro, é irrelevante? Director de campanha do referendo da PMA

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