Liberdade, valores e a lei do vale tudo José Manuel Fernandes
Há alturas em que até o PCP tem mais bom senso do
que o PS. Mas não todo o PS: na Comissão de
Educação, dois socialistas votaram com a oposição
para aprovar uma emenda razoável do PCP à lei sobre
Educação Sexual nas escolas
Não é habitual o disciplinado grupo parlamentar do
Partido Socialista dividir-se numa votação ao ponto
de a perder. Mas foi exactamente isso que aconteceu
na quarta-feira na Comissão de Educação do
Parlamento. Dois deputados do PS votaram
favoravelmente uma proposta de alteração do PCP à
lei relativa à educação sexual nas escolas. O PS
queria que uma das finalidades da lei fosse "a
promoção de igualdade de género" e o PCP, que apesar
de tudo ainda não perdeu o contacto com a realidade,
preferia "a promoção da igualdade entre os sexos".
Dois socialistas trânsfugas permitiram que a
proposta de alteração do PCP passasse.
Dir-se-á: e que importância tem isto? Reconhecer um
facto elementar: se as leis devem reflectir, na
medida do possível, a evolução do sentimento da
sociedade, é fácil perceber que qualquer cidadão
sabe o que é a igualdade entre os sexos mas a
esmagadora maioria dos portugueses não entenderia,
mesmo dando-lhe aulas, essa noção "moderna" e muito
politicamente correcta que, para além dos sexos
masculino e feminino, para além do reconhecimento de
que existem diferentes orientações sexuais, pretende
abranger tudo isto e mais algumas situações de
raríssima ocorrência em diferentes categorias
agrupadas sob a noção de género.
É certo que o termo não terá desaparecido
completamente da lei, mas a verdade é que esta tem
um alinhamento curricular muito disparatado e
pressupõe que a escola deve ter um "papel
imperioso", se bem que "complementar", "em matéria
de educação sexual, uma vez que os jovens
portugueses e europeus passam cerca de dois terços
do dia na escola". Sem discutir este "pormenor" do
"dois terços do dia", a verdade é que a abrangência
do documento subverte a noção de complementar e,
como notou recentemente no blogue da Sedes Fernando
Adão da Fonseca, se a lei define "como fundamental a
participação dos pais nas diversas fases dos
programas de educação sexual nas escolas, subentendo
que cabe aos pais colaborar com as escolas para o
êxito da educação sexual definida pelo Estado,
quando o contrário é que estaria correcto".
É que, mesmo assumindo que é verdade que 50 por
cento dos filhos nunca falaram com os pais sobre
sexualidade, e 30 por cento nem sequer com as mães,
há uma grande diversidade de pontos de vista sobre a
forma como as crianças, os adolescentes e os adultos
devem viver a sua sexualidade. Mais: a lei não pode
deixar de ser vaga, pois não é criada qualquer
cadeira específica, deixando por isso uma enorme
margem para que valores muito diferentes sejam
transmitidos de escola para escola.
Nada de mal, pelo contrário, haveria nesta
diversidade não ocorresse o facto de, no nosso
sistema de ensino, serem mínimas as possibilidades
de os pais escolherem a escola dos seus filhos a não
ser que a paguem do seu bolso, optando pelo ensino
privado, ou aldrabem no local de residência. Sem
esta liberdade de escolha, fecha-se o ciclo que, na
prática, transfere para a escola e para os
professores a direcção da educação sexual, numa
violação da Declaração Universal dos Direitos do
Homem onde se estabelece de forma clara a primazia
dos pais na escolha do género de educação a dar aos
filhos (art. 26.º).
Sem liberdade de escolha, e passando as crianças e
os jovens "dois terços do dia" na escola, na prática
os valores morais, no que diz respeito à
sexualidade, que lhes serão transmitidos dependerão
dos currículos escolares e não da escolha livre dos
pais, em especial de todos os pais sem meios para
colocar os seus filhos numa escola cujo projecto
educativo coincida com os seus valores - o que é
verdade tanto para os que defendem a importância das
relações estáveis como para os que acham que os seus
filhos devem praticar o amor livre.
Daí a sensatez de, ao menos, apesar da vontade do
PS, a maioria da Comissão Parlamentar tenha tido a
sensatez de se referir ao que é consensual - a
defesa da igualdade entre os sexos -, em vez de se
aventurar por terrenos muito "modernos", mas
incompreensíveis para a maioria, como a noção de
"género", uma construção teórica cujo valor varia
conforme as escolas de pensamento mas se distancia
da separação clara que resulta de ter dois
cromossomas XX ou um cromossoma Y e outro X.