O Estado tem funções essenciais na sociedade. Para
as cumprir deveria ter como regra suprema o velho
princípio médico do juramento de Hipócrates: Primum
non nocere, acima de tudo não prejudicar.
Há 200 anos, insultar o rei dava severo castigo, mas
o assassino de um escravo ficava impune. Era uma
época bárbara sem respeito pelos direitos humanos.
Hoje, uma mãe mata o filho aos dois meses de
gestação com apoio do Estado (Lei n.º 16/2007 de 17
de Abril), mas será exemplarmente castigada se fumar
um cigarro num bar (proposta de lei n.º 119/x).
Aliás, mais castigada que se fumasse droga. Temos de
abandonar a ideia de que a lei melhorou.
Não melhorou mas aumentou. A justiça antiga só
actuava em crimes cometidos e danos causados. A
lista de delitos e penas era discutível, mas
limitada. Hoje a lei mete-se em tudo na nossa vida,
não para corrigir injustiças, mas para ensinar como
viver. As autoridades nacionais e europeias estatuem
os mais pequenos detalhes da existência. Nada existe
sem regulamentação. O Estado deixou de ser justo
para ficar bisbilhoteiro.
O futuro desprezará o tempo que deixou a vida e a
liberdade nas mãos de miríades de burocratas,
funcionários, inspectores, ministros, polícias e
juízes. Técnicos que, pela sua acção, geram muitas
vezes mais estragos e custos que qualquer benefício
que julguem atingir. O défice mostra-o bem. Mas o
défice é o menos.
O pior é que, na ânsia regulamentar, a lei passou a
castigar quem não faz mal nenhum. A polícia multa
por conduzir sem cinto de segurança ou sem seguro,
penaliza quem faltar à medicina no trabalho. A lei
interessa-se por materiais de construção, formas de
brinquedos, peso de mochilas escolares. No
restaurante, onde não se fuma mas ainda se come, a
lista de requisitos e regras abstrusas enche volumes
pesadíssimos. Tudo com penas agravadas. O mundo
diz-se mais evoluído, mas é mais espartilhado,
quadriculado, entupido.
Não admira que o tema recorrente nos jornais seja a
incapacidade das autoridades, da Ota e TGV à
corrupção e desleixo. Os funcionários são os
primeiros a denunciar os disparates dos seus
serviços. A fúria legista gera os crimes mais
bizarros cometidos, não por malfeitores, mas pelas
autoridades pretendendo melhorar a nossa vida.
Esta afirmação parece severa, mas é evidente. Quando
inspectores inutilizam toneladas de comida, que
sabem em bom estado, porque o acondicionamento não
era regular, cometem pecado que brada aos céus. Um
exemplo recente mostra como até se minam as bases da
nossa identidade nacional.
A escola, antes de tudo, ensina a ler e escrever.
Por isso os custos de mudar a gramática lectiva são
esmagadores, com benefícios vagos. Os linguistas,
como todos os cientistas, são inovadores, polémicos,
puristas. É natural que as teorias abundem, evoluam,
se entrechoquem. Mas quando o Ministério da Educação
intervém, a interessante discussão de especialistas
passa a gravíssimo atentado à língua e cultura.
A Portaria n.º 1488/2004 de 24 de Dezembro revogou a
anterior gramática (Nomenclatura Gramatical
Portuguesa da Portaria n.º 22 664 de 28 de Abril de
1967), adoptando, "a título de experiência
pedagógica, a Terminologia Linguística para os
Ensinos Básico e Secundário". Agora, como a
experiência correu mal, vai proceder-se, "até
Janeiro de 2009, à revisão dos programas das
disciplinas de Língua Portuguesa" e "ficam
suspensos, até 2010, os processos de adopção de
novos manuais das disciplinas de Língua Portuguesa
dos 5.º, 6.º, 7.º, 8.º e 9.º anos de escolaridade"
(Portaria n.º 476/2007 de 18 de Abril).
A antiga gramática está revogada e a nova vai ser
revista. Quem aprendeu, afinal não sabe nada. Quem
quer aprender, não sabe o quê. Ninguém se entende. E
o assunto é "só" a língua materna. Se existisse uma
conspiração deliberada para destruir as bases da
nossa educação, progresso e unidade nacionais, o
efeito não seria pior. O facto de isto ser causado,
não por terroristas, mas pela arrogância e
incompetência de funcionários, não é desculpa. Estão
na prisão muitos por muito menos.