Quando os maus exemplos vêm de cima...
José Manuel Fernandes
As palavras valem cada vez menos, os actos cada vez
mais
Lembram-se do 10 de Junho de 2009? Poucos se
recordarão - até porque demasiados trataram de fazer
o contrário do que então lá se recomendava.
António Barreto - que ontem voltou a fazer um
discurso notável, só que centrado na necessidade de
o país honrar os seus ex-combatentes - pregou então
as virtudes do exemplo. "Dê-se o exemplo de um poder
firme, mas flexível, e a democracia melhorará",
disse então. "Dê-se o exemplo de honestidade e
verdade, e a corrupção diminuirá. Dê-se o exemplo de
tratamento humano e justo e a crispação
reduzir-se-á. Dê-se o exemplo de trabalho, de
poupança e de investimento e a economia sentirá os
seus efeitos."
Dificilmente se poderia ter ido, nos 12 meses que
desde então decorreram, por caminhos mais
radicalmente distintos. O poder não foi firme, antes
teve tiques de autoritarismo, e também não foi
flexível, porque foi errático. Não houve nem
honestidade nem verdade, pois assistimos a
grosseiros casos de manipulação dos poderes públicos
e a uma campanha eleitoral erguida sobre um castelo
de mentiras que a dura realidade desmascarou sem
delonga. E também não houve nem poupança nem
investimento saudável, antes endividamento e
delapidação do escasso património da nação.
Pior: se há um ano António Barreto apelou a que se
tivesse "consciência de que, em tempos de excesso de
informação e de propaganda", as palavras dos
políticos, empresários, sindicalistas e funcionários
"são cada vez mais vazias e inúteis" e que o seu
"exemplo é cada vez mais decisivo", o ciclo
eleitoral e o ciclo dos orçamentos e dos PEC mostrou
como há quem nada tenha aprendido e repita, de forma
cada vez mais patética, um discurso propagandístico
sem colagem com a realidade.
Não surpreende, por isso, que, não tendo o
socratismo vigente entendido que "em momentos de
crise económica, de abaixamento dos critérios morais
no exercício de funções empresariais ou políticas, o
bom exemplo pode ser a chave, não para as soluções
milagrosas, mas para o esforço de recuperação do
país", se tenham sucedido os maus exemplos e o país
esteja hoje mais longe da recuperação do que estava
há um ano. Na verdade, como aqui escrevi a semana
passada, a miséria moral que mina as fileiras do
partido maioritário não é apenas lamentável e
indecorosa, é politicamente corrosiva.
Assim, ao contrário do que alguns trataram de dizer
precipitadamente, o discurso de ontem do Presidente
da República não é tão inócuo como uma leitura
apressada do seu apelo a não existirem "crispações
inúteis" pode fazer crer. Isto porque Cavaco Silva
disse, com clareza, que a "coesão nacional exige que
a sociedade se reveja no rumo da acção política". Ou
seja, não só "os sacrifícios que fazemos têm de ser
repartidos de forma equitativa e justa e, mais do
que isso, têm de possuir um sentido claro e
transparente, que todos compreendam", como é
fundamental não esquecer que "não se podem pedir
sacrifícios sem se explicar a sua razão de ser, que
finalidades e objectivos se perseguem, que destino
irá ser dado ao produto daquilo de que abrimos mão".
O contraste entre estas máximas e a forma
atabalhoada como se tem vindo a despejar medidas sem
coerência nem visão, ou sem sequer se ter o cuidado
de cumprir as normas constitucionais, não podia ser
maior. Pelo que, ao lembrar que "quanto mais se
exigir do povo, mais o povo exigirá dos que o
governam", o Presidente começou a abrir caminho para
a hipótese de dissolução. Até porque no dia em que
os eleitores ("a sociedade") não se revirem no rumo
do país, será necessário ouvir os eleitores.
Há um ano, no 10 de Junho de Santarém, Cavaco Silva
disse que "a verdade gera confiança, a ilusão é
fonte de descrença", acrescentando que, "tanto no
Estado como na sociedade civil, é preciso adoptar
uma cultura de transparência e de prestação de
contas". Agora acrescentou, quase enigmaticamente,
que "os portugueses anseiam por limpar Portugal,
aspiram a um país mais são, mais limpo, não querem
viver numa atmosfera carregada e irrespirável".
Faltou-lhe esclarecer que o lixo não está apenas
espalhado pelas florestas portuguesas por falta de
civismo, mas que do mais alto do poder executivo vêm
os piores exemplos e o teimoso autismo que o impediu
de escutar os avisos neste caminho para a
insustentabilidade e hoje o impede de restaurar um
clima de confiança. Um autismo que, de resto, José
Sócrates manifestou na sua reacção às palavras do
Presidente, ao considerar - no dia seguinte a termos
contraído empréstimos a um juro superior ao que a
Grécia pagará no plano de ajuda financeira da União
Europeia (UE) e do Fundo Monetário Internacional
(FMI) - que a nossa situação não é insustentável...
Ora é exactamente neste ponto que Cavaco Silva se
deixa não só aprisionar pelos limites dos seus
poderes presidenciais, como pelos cálculos inerentes
ao calendário das Presidenciais, como ainda pela sua
própria dificuldade em imaginar um país e um rumo
realmente distintos. Mas encontrar esse país e esse
rumo é, acredito, a única forma de sairmos do buraco
onde nos deixámos aprisionar.
Se olharmos para o que nos propomos fazer para
enfrentar a crise das finanças públicas - no
essencial aumentar a carga fiscal - e aquilo que
países como o Reino Unido, a Alemanha e a própria
Espanha se propõem fazer - no essencial reduzir a
despesa pública -, verificamos como insistimos em
escavar a nossa sepultura. Pela simples razão de que
o nosso principal problema é a falta de
competitividade da nossa economia e nenhuma economia
se torna mais competitiva quando as empresas e os
cidadãos pagam mais impostos mas não recebem mais e
melhores serviços públicos.
Se, em contrapartida, olharmos para os serviços
públicos e verificarmos que muitos deles são
redundantes, agravam as distorções sociais ao
introduzir rigidez e centralismo onde deveria haver
imaginação, inovação e descentralização, e até
poderiam desaparecer de um dia para o outro que nem
daríamos por isso, então agradeceríamos todo o
espaço que fosse devolvido aos portugueses.
Como disse D. Manuel Clemente, bispo do Porto, na
cerimónia de entrega do Prémio Pessoa, "o melhor de
Portugal pouco aparece e não abre geralmente os
noticiários (...) mas existe e por ele mesmo
continuamos nós a existir - apesar de tudo, mas não
apesar de nós". Ora esse "melhor de Portugal" que se
encontra "em muitas escolas, estatais ou
particulares, em muitos estabelecimentos de saúde,
serviços públicos e instituições particulares de
solidariedade social", ou na vontade de vencer de
muitos jovens licenciados, ou entre os "empresários
e gestores com verdadeiro sentido de missão, que
revelam surpreendente capacidade de inovar e
conquistar mercados", esse melhor de Portugal
precisa de mais espaço e de mais liberdade para
triunfar. Não precisa, sobretudo, de um Estado
controlador, dirigista, paquidérmico e submetido aos
senhores do momento.
Querem um exemplo? Precisamos de escolas e de
professores com mais autonomia e responsabilidade
para, face a um aluno de 15 anos retido no 8.º ano,
decidirem se este deve ou não ter uma oportunidade
para tentar chegar ao 10.º ano, não precisamos de um
ministério a passar quase administrativamente alunos
ad hoc por esse país fora. Infelizmente, nos últimos
anos, em Portugal tudo se centralizou, para tudo se
criaram regulamentos e comissões e por todo o lado
se desconfiou da imaginação e da iniciativa dos
portugueses. Jornalista, http://twitter.com/jmf1957