Nós, os portugueses, pobres, felizes e
individualistas José Manuel Fernandes
Dois estudos mostram um Portugal que fez a transição
do mundo rural para o mundo urbano equilibrando um
maior individualismo com a manutenção de uma
referência central: a família
Dois estudos revelados ontem e hoje - um sobre as
necessidades básicas dos portugueses, outro sobre os
seus valores - revelam alguns dados interessantes
que todos deviam ter em conta quando desenham
políticas públicas. Ao contrário de algumas leituras
que foram realizadas, os estudos não são muito
deprimentes. Para ser mais exacto: os estudos não
são deprimentes para quem acredita nos indivíduos e
na sociedade civil, mas são altamente deprimentes
para quem crê que deve ser o Estado a tratar de nós
em todos os momentos da nossa vida.
O primeiro estudo confirma como continuamos a ser
pobres: quase dois terços dos portugueses não têm
dinheiro para pagar férias fora da sua casa ou da
casa de familiares, mais de metade diz sentir
dificuldades financeiras quando fica de baixa
médica. Mas o mal só parcialmente está neles, se bem
que só dois em cada cinco gostem de arriscar e ainda
menos se sintam enérgicos ou optimistas. Em
contrapartida verifica-se que a instituição familiar
ainda é muito forte e que funciona como a melhor
forma de entreajuda entre os cidadãos. Não por
acaso, é também com a vida familiar que se sentem
mais satisfeitos, sendo a participação cívica a
dimensão da vida que menos os satisfaz. A
importância da família e, depois, a dos amigos foram
de resto dois dos aspectos positivos que Isabel
Guerra, uma das suas autoras, viu nas suas
conclusões.
Isso não surpreende muito se repararmos no seu nível
de confiança nas instituições, sobretudo nas
instituições públicas. Mais de dois terços não
confiam em quem nos governa, o grau de confiança no
ensino público é mais baixo do que o grau de
confiança no ensino privado, o mesmo sucedendo
quando se compara o grau de confiança nos sistemas
de saúde públicos por comparação com os privados.
Estes dados são coerentes com
os do estudo sobre os valores dos portugueses. Nos
últimos dez anos muita coisa mudou em Portugal, mas
a família não deixou de ocupar um lugar central nas
nossas vidas, pois ter uma família sólida, amar e
ser amado, ser um profissional competente, ser
honrado e ter amigos leais ainda é mais importante
do que ser famoso e rico. Talvez por isso hoje, como
há dez anos, sete em cada dez inquiridos continuam,
grosso modo, a reprovar que se pratiquem relações
sexuais com vários parceiros ou se mantenham
relações extraconjugais. De resto, só um familiar
levaria a maioria dos inquiridos neste outro estudo
a arriscar a vida para o salvar, tendo diminuído
muito o número dos que se arriscariam para salvar
outra pessoa. O que, visto em conjunto com outros
elementos do estudo, levou o seu responsável a
reconhecer que os portugueses estão mais
individualistas.
Em todas as sociedades existe uma espécie de capital
intangível que muitos designam por "capital social"
e que depende mais dos seus valores colectivos do
que dos seus governantes. Estes estudos mostram que
a forma como em Portugal a transição de uma
sociedade rural para uma sociedade predominantemente
urbana não destruiu a instituição familiar mas
acrescentou algum individualismo e bastante
tolerância. Ora isto permite manter um mínimo de
coesão quando as organizações da sociedade civil são
fracas, a tradição de participação cívica baixa e é
elevada a desconfiança no Estado, nos governos e nas
instituições públicas.
Para os políticos isto devia
ser um sinal: se as famílias continuam a representar
um papel tão importante na nossa sociedade, é mais
importante as instituições públicas apoiarem-nas do
que tentarem substituí-las. É mais importante
envolvê-las nos problemas dos seus filhos ou dos
seus idosos, por exemplo, do que tratar de
monopolizar o ensino, retirar-lhes a liberdade de
escolha, multiplicar os lares em vez de promover o
acompanhamento domiciliário.
E se os portugueses dão sinais de um maior
individualismo, isso pode ser positivo se forem
levados a arriscar, a inovar, a empreender, mas
muito negativo se o peso do Estado em quase todos os
sectores da sociedade os conduzirem à cunha, ao
"esquema", ao "chico-espertismo". Na verdade, como
referiu um dos autores do estudo sobre os valores,
considerar que "cada um deve cuidar de si" decorre
mais do individualismo do que do egoísmo, até porque
é equilibrado com a importância dada à família, o
que permite conservar tecidos sociais que amortecem
o choque das crises e explicam como, apesar da
pobreza, sejam pouquíssimos os que se sentem
excluídos.
Isto são más notícias para os "educadores" que
desconfiam das famílias e acreditam no Estado
iluminado, sapiente e misericordioso. Apesar de
andarem há décadas (incluindo no tempo do
salazarismo) a tentar vender aos portugueses essa
imagem (nunca alcançada e mentirosa) do Estado,
estes resistem. Falta-lhes o resto: mais sentido das
suas obrigações cívicas e mais gosto pelo risco.