Público - 30 Jun 09

 

Nós, os portugueses, pobres, felizes e individualistas
José Manuel Fernandes

 

Dois estudos mostram um Portugal que fez a transição do mundo rural para o mundo urbano equilibrando um maior individualismo com a manutenção de uma referência central: a família

 

Dois estudos revelados ontem e hoje - um sobre as necessidades básicas dos portugueses, outro sobre os seus valores - revelam alguns dados interessantes que todos deviam ter em conta quando desenham políticas públicas. Ao contrário de algumas leituras que foram realizadas, os estudos não são muito deprimentes. Para ser mais exacto: os estudos não são deprimentes para quem acredita nos indivíduos e na sociedade civil, mas são altamente deprimentes para quem crê que deve ser o Estado a tratar de nós em todos os momentos da nossa vida.

 

O primeiro estudo confirma como continuamos a ser pobres: quase dois terços dos portugueses não têm dinheiro para pagar férias fora da sua casa ou da casa de familiares, mais de metade diz sentir dificuldades financeiras quando fica de baixa médica. Mas o mal só parcialmente está neles, se bem que só dois em cada cinco gostem de arriscar e ainda menos se sintam enérgicos ou optimistas. Em contrapartida verifica-se que a instituição familiar ainda é muito forte e que funciona como a melhor forma de entreajuda entre os cidadãos. Não por acaso, é também com a vida familiar que se sentem mais satisfeitos, sendo a participação cívica a dimensão da vida que menos os satisfaz. A importância da família e, depois, a dos amigos foram de resto dois dos aspectos positivos que Isabel Guerra, uma das suas autoras, viu nas suas conclusões.

 

Isso não surpreende muito se repararmos no seu nível de confiança nas instituições, sobretudo nas instituições públicas. Mais de dois terços não confiam em quem nos governa, o grau de confiança no ensino público é mais baixo do que o grau de confiança no ensino privado, o mesmo sucedendo quando se compara o grau de confiança nos sistemas de saúde públicos por comparação com os privados.

 

Estes dados são coerentes com os do estudo sobre os valores dos portugueses. Nos últimos dez anos muita coisa mudou em Portugal, mas a família não deixou de ocupar um lugar central nas nossas vidas, pois ter uma família sólida, amar e ser amado, ser um profissional competente, ser honrado e ter amigos leais ainda é mais importante do que ser famoso e rico. Talvez por isso hoje, como há dez anos, sete em cada dez inquiridos continuam, grosso modo, a reprovar que se pratiquem relações sexuais com vários parceiros ou se mantenham relações extraconjugais. De resto, só um familiar levaria a maioria dos inquiridos neste outro estudo a arriscar a vida para o salvar, tendo diminuído muito o número dos que se arriscariam para salvar outra pessoa. O que, visto em conjunto com outros elementos do estudo, levou o seu responsável a reconhecer que os portugueses estão mais individualistas.

 

Em todas as sociedades existe uma espécie de capital intangível que muitos designam por "capital social" e que depende mais dos seus valores colectivos do que dos seus governantes. Estes estudos mostram que a forma como em Portugal a transição de uma sociedade rural para uma sociedade predominantemente urbana não destruiu a instituição familiar mas acrescentou algum individualismo e bastante tolerância. Ora isto permite manter um mínimo de coesão quando as organizações da sociedade civil são fracas, a tradição de participação cívica baixa e é elevada a desconfiança no Estado, nos governos e nas instituições públicas.

 

Para os políticos isto devia ser um sinal: se as famílias continuam a representar um papel tão importante na nossa sociedade, é mais importante as instituições públicas apoiarem-nas do que tentarem substituí-las. É mais importante envolvê-las nos problemas dos seus filhos ou dos seus idosos, por exemplo, do que tratar de monopolizar o ensino, retirar-lhes a liberdade de escolha, multiplicar os lares em vez de promover o acompanhamento domiciliário.

 

E se os portugueses dão sinais de um maior individualismo, isso pode ser positivo se forem levados a arriscar, a inovar, a empreender, mas muito negativo se o peso do Estado em quase todos os sectores da sociedade os conduzirem à cunha, ao "esquema", ao "chico-espertismo". Na verdade, como referiu um dos autores do estudo sobre os valores, considerar que "cada um deve cuidar de si" decorre mais do individualismo do que do egoísmo, até porque é equilibrado com a importância dada à família, o que permite conservar tecidos sociais que amortecem o choque das crises e explicam como, apesar da pobreza, sejam pouquíssimos os que se sentem excluídos.

 

Isto são más notícias para os "educadores" que desconfiam das famílias e acreditam no Estado iluminado, sapiente e misericordioso. Apesar de andarem há décadas (incluindo no tempo do salazarismo) a tentar vender aos portugueses essa imagem (nunca alcançada e mentirosa) do Estado, estes resistem. Falta-lhes o resto: mais sentido das suas obrigações cívicas e mais gosto pelo risco.