A nossa prática tem sido a de discutir os efeitos e
as consequências dos fenómenos que vão ocorrendo nas
sociedades sem qualquer valoração das respectivas
causas, que permanecem ocultas ou num limbo. Como é
da nossa natureza acreditar que compete ao
legislador resolver essas questões. Liberalizar
tornou- -se uma palavra de ordem e a invenção de uma
agenda fracturante permitiu remeter para a via
legislativa problemas incómodos e transformá-los em
delirantes bandeiras ideológicas. Uma receita
culturalmente manhosa para a dimensão das questões.
Eram já conhecidos indicadores preocupantes no que
se refere ao aborto após a aprovação da lei, mas
ficámos agora a saber, pela voz do presidente do
Conselho Nacional de Ética, que os resultados vão no
sentido oposto do que foi propagado pelos que
promoveram a liberalização e viabilizaram a lei: 50%
das mulheres que fazem aborto faltam à consulta de
planeamento familiar obrigatória 15 dias depois; há
mulheres que fazem, no Serviço Nacional de Saúde,
dois ou três abortos por ano; o número de abortos
aumentou de 12 mil para 18 mil em 2008 e para 19 mil
em 2009.
São os riscos de legislar num clima de contenda
ideológica sobre questões que têm a ver com a vida e
a morte, com o respeito e a dignidade, com a
responsabilidade individual e colectiva, com
princípios básicos de civilização. Este núcleo duro
foi e é o âmago da questão e não devia ser varrido
por argumentários que parecem ignorar o essencial da
condição humana e o valor das vítimas, de todas as
vítimas do aborto.
É também um exemplo de má fé legislativa: os adeptos
do "sim" sabiam que esta lei não iria resolver nada
e, pelo contrário, agravaria a situação. Ninguém com
um mínimo de conhecimento da realidade, das causas
que estão na origem do aborto, da heterogeneidade
das situações, da desigualdade das condições podia,
de boa-fé, acreditar na bondade da lei. Aceitaram-se
como bons dados forjados, ouviram-se peritos
escolhidos à la carte, criou-se um discurso
ditatorial, explorou-se a compaixão das pessoas e
apagou--se o histórico.
Volto por isso ao ponto onde sempre estive, com as
mesmas preocupações que sempre senti e que agora
parecem ser partilhadas pelo presidente da Comissão
Nacional de Ética. Uma lei que liberaliza, que
consagra o aborto a pedido sem necessidade de
qualquer justificação, é uma lei que institui a
violência pela consagração de medidas
desproporcionais e banaliza um acto que, em qualquer
circunstância, é sempre de extrema gravidade.
Criou-se nesta, como em outras questões éticas, uma
cultura desumana assente na exaltação do egoísmo e
da irresponsabilidade: da mulher em relação a si
própria, em relação a um terceiro cujo direito a
nascer é preterido ao menor capricho, em relação à
sociedade em geral que não se revê num desmazelo
militante cuja factura não quer pagar, em relação
aos profissionais de saúde que abraçaram uma vocação
assente em valores que estes actos violentam, e que
estão na primeira linha de um SNS de recursos
escassos e necessidades crescentes.
E, tal como então previmos, confirma-se agora uma
perversidade adicional desta lei que funcionou como
analgésico das más consciências públicas e privadas
quanto às causas do aborto que merecem ponderação: o
combate à pobreza das mulheres, a criação de meios
efectivos para orientar, informar e criar
alternativas, apoios à maternidade, um planeamento
familiar eficaz e acessível.
De acordo com o presidente da Comissão Nacional de
Ética é preciso coragem para rever aspectos
negativos da actual lei. Que coragem e para quê?
Para pôr de lado hipocrisias e oportunismos
políticos e corrigir uma lei profundamente atingida
por equívocos? Ou bastará a pequena coragem do
remendo legislativo que dissolva a incomodidade das
evidências e devolva a todos uma benévola
sonolência?