Os tempos de Sócrates estão a acabar mas a
herança é pesada
José Pacheco Pereira
Pensava ele que tinha tempo para inverter a situação
fazendo um braço-de-ferro. Mas surgiu um novo
elemento: a crise grega
Os tempos de Sócrates estão a acabar, esgotados,
encurralados, perdidos na nuvem de arrogância do
"animal feroz", na amoralidade da sua política, na
mentira total em que transformou toda a actividade
governativa, na impotência face a uma crise nacional
que agravou e uma crise internacional que ignorou,
adiou e, por isso mesmo, também agravou. Entrando
num novo ciclo político após as eleições, estragou
todas as oportunidades, numa cegueira que vem da sua
incontestável força anímica, e que se transformou
numa dupla recusa: recusa de reconhecer a perda da
maioria absoluta e recusa em mudar. Entrou numa nova
situação com um governo velho e cansado, habituado a
pôr e a dispor no Parlamento, e sem outra política
que não fosse continuar a fazer o mesmo, mesmo que
para isso tivesse que provocar novas eleições.
Pensava ele que tinha tempo para inverter a situação
fazendo um braço-de-ferro, como se o seu braço
tivesse a força de 2005. Mas surgiu um novo elemento
de aceleração que acentua ainda mais a esquizofrenia
com que um Sócrates minoritário pretendia continuar
como se nada tivesse acontecido: a crise grega. Não
custava perceber, pelo modo como o Governo avançou
por aquilo que gosta, o betão das grandes obras
públicas e o keynesianismo bastardo do "investimento
público", que o controlo do défice seria para 2013,
quando a União Europeia exigia contenção. E mesmo
assim ia-se ver, porque muita coisa podia mudar
entretanto e empurrar os problemas para o futuro é
um dos aspectos do voluntarismo de Sócrates.
O programa para 2010 era gastar e continuar a
gastar, até a crise grega e as quebras e ameaças de
baixa nos ratings das agências internacionais terem
exigido fazer em 2010 aquilo que era apenas para
2013. Quem viesse a seguir que pagasse a crise, e
quem vem a seguir no fim da década e na próxima
década já tem garantida uma vultuosa conta deixada
pelo Governo actual, que faz as obras para os que
vem a seguir pagarem os custos. Mas a crise grega
fez soar os alarmes todos e então a esquizofrenia
aumentou: cada inauguração, hospitais, creches,
pontes, linhas de caminho-de-ferro, soa agora como
um passo na direcção da "situação explosiva" de que
o Presidente falou e de que Manuel Ferreira Leite
fala solitária há ano e meio. Pois é, o virtual é
socrático, o real cavaquista e leitista.
E quanto mais Sócrates se enterra na negação do
real, mais este lhe bate à porta. Até o próprio
parece começar a aperceber-se disto, e a responder a
este fim dos tempos numa fuga em frente obstinada,
porque é da sua natureza, mas confusa e caótica. Já
toda a gente percebeu tudo isto menos os
intelectuais orgânicos "socráticos", um conjunto
modernaço de gente que tem o coração no Bloco de
Esquerda, mas a carteira no PS, ou melhor, no
gabinete do primeiro-ministro. Gente que pouco preza
a liberdade mas que tem acima de tudo um enorme
fascínio pelo poder como ele se exerce nos dias de
hoje, entre o culto da imagem, o pedantismo das
causas "fracturantes", o vanguardismo social, o
"diabo que veste Prada" ou Armani, e o "departamento
dos truques sujos" à Richard Nixon, tudo adaptado à
mediania provinciana da capital. A ascensão ao poder
de uma geração de diletantes embevecidos com os
gadgets, pensando em soundbites, muito ignorantes e
completamente amorais, que se promovem uns aos
outros e geram uma política de terra queimada à sua
volta, é a entourance que o "socratismo" criou e vai
deixar órfã.
Não sei se isto vai acabar com um bang ou com um
ping, mas que já está no fim tenho poucas dúvidas.
Isso não significa que todos os dias esta
degenerescência do pensamento no poder não faça os
seus estragos. Em que país um ministro das Obras
Públicas pode pensar com esta superficialidade
assustadora sobre os méritos de um TGV que era para
nos unir à Europa e vai ficar em Madrid? Veja-se
frase toda:
"Lisboa pode-se transformar, por exemplo, na praia
de Madrid, em termos de condições turísticas, as
condições que nós temos para desportos novos como o
surf ou se nós pensarmos na articulação que Lisboa
pode ter com Setúbal, com Cascais, com Sintra."
Não há uma ideia certa , desde a "praia de Madrid",
aos "desportos novos como o surf", à "articulação
que Lisboa pode ter com Setúbal, com Cascais, com
Sintra". É tudo asneira. Mas há mais: em que país um
ministro das Obras Públicas pode ver assim a
inovação tecnológica? E de novo vale a pena
transcrever a frase toda:
"Quando o comboio foi introduzido no século XIX,
provavelmente as carroças que eram puxadas a cavalos
caíram e, se calhar, na altura, os agentes
económicos que estavam ligados à exploração das
carroças, e que levavam as pessoas, ficaram
extremamente tristes e todas as indústrias que
estavam associadas, a indústria da palha, por
exemplo. Reparem os industriais que estavam
preocupados com o abastecimento da palha para os
cavalos, ficaram preocupadíssimos porque, de facto,
a sua indústria caiu."
Outra vez, é tudo asneira. "Indústria da palha"?
Comboios competindo com carroças? Com um ministro
que vê assim, em jargão de "choque tecnológico", o
século XIX e a história e o impacto económico dos
caminhos-de-ferro, não podemos senão ter um enorme
receio sobre o modo como estes governantes vêem o
TGV e o seu impacto económico.
Exemplos sobre exemplos desta degenerescência
aparecem todos os dias. Já não são bonitos de se ver
os tempos da crise do "socratismo", mais ainda vão
ser piores os tempos da queda do "socratismo". Claro
que isto é tudo a superfície efémera. O fundo é a
perda de competitividade da economia portuguesa, o
défice descontrolado, a dívida que ninguém sabe como
vai ser paga, o desemprego e o empobrecimento dos
portugueses, o país cada vez mais longe da Europa.
Mas a superfície traduz um ambiente, uma ecologia,
um "estado" de podridão. Na verdade, como a
sabedoria popular dos provérbios afirma, o peixe
apodrece pela cabeça.