A prisão da mulher que aborta tornou-se, neste
referendo, o ponto nevrálgico da exploração de uma
frágil e fragmentada consciência colectiva. Quem é
que quer ver as mulheres presas? A esta pergunta,
cada um de nós precipita-se a olhar para dentro de
si mesmo. E vê o quê? Vê essa mulher abandonada,
entregue à sua sorte, desesperada. E que diz? Não,
eu não quero que ela seja presa!
Antes de nos deixarmos arrastar por este "círculo em
expansão da compaixão moral" é obrigatório, por uma
questão de honestidade intelectual, que se analise
do quê e de quem estamos a falar.
Na reflexão que este referendo exige de todos nós,
convém lembrar que o aborto é um crime na exacta
medida em que a vida humana é um valor essencial e o
direito à vida a base de todos os outros. Destruir
uma vida que tem todas as condições para prosseguir
o seu ciclo natural de de-senvolvimento é uma
violência muito superior à que possa sentir a mulher
que aborta por um puro acto de voluntarismo, quando
é julgada.
Em todos os ordenamentos jurídicos o aborto é um
crime precisamente porque a vida humana é um valor
fundamental, incluindo, naturalmente, a vida humana
intra-uterina. A lei de 1984 não afasta este
princípio basilar, apenas tipifica situações
excepcionais, casos-limite. E noutros países o que
se pôs em causa foi a existência, ou não, de vida
humana nas primeiras semanas de gestação. Questão
eminentemente do domínio da ciência e não do
direito. Sendo que o progresso científico,
entretanto verificado, fez desaparecer a base
empírica da oposição fundamental entre o ser nascido
- visível e imediatamente presente na vida social -
e o ser não nascido, inacessível e oculto.
O ser humano não nascido aparece agora, e aparecerá
no futuro, em contextos sociais cada vez mais
extensos, como uma entidade ética e jurídica de per
si.
A primeira pergunta a exigir fortemente resposta é a
de quantas mulheres foram julgadas em Portugal? E
dessas, quantas foram condenadas? E dessas, quantas
cumpriram pena de prisão?
É que, enquanto um "sim" genérico e cego desvaloriza
em absoluto o acto de abortar e elimina do nosso
ordenamento jurídico o valor da vida humana até às
dez semanas de gravidez, a ponderação, caso a caso,
das concretas circunstâncias em que cada concreta
mulher, ela e a sua condição, foi levada a abortar é
o único caminho justo que distingue comportamentos
assentes em puro laxismo irresponsável, pura
leviandade (que numa sociedade responsável não devem
merecer compaixão), das situações condicionadas por
factores objectivos, que podem explicar uma atitude
extrema. Este distinguo é da essência do
sistema judicial e é uma das mais relevantes funções
dos magistrados.
Ao contrário do que alguns pensam, não há leis
responsáveis para comportamentos irresponsáveis. Mas
há sempre uma aplicação responsável da lei, e essa é
a melhor garantia.
É bom relembrar que o "sim", neste referendo, não
contribuirá em nada para acalmar a consciência
colectiva não só quanto à pobreza e solidão das
mulheres que abortam, como também quanto à
humilhação do julgamento ou da prisão. Podia até ser
verdade se a pergunta que vai ser feita aos
portugueses fosse outra... Mas não é. Com este
"sim", às dez semanas e um dia, as mulheres que
abortarem - na mesma pobres, na mesma abandonadas,
na mesma humilhadas - podem ser presas.
Nada aflige mais a minha condição feminina como
ouvir e ver na televisão homens mediáticos a
perorarem, com um conveniente ar e tom compungido,
sobre as pobres mulheres que abortam, porque abortar
é sempre mau, lembram, um trauma, já se sabe, mas
paciência, o que é que se pode fazer?
Como se na origem da gravidez não estivesse sempre
um homem e na origem do aborto não estivesse quase
sempre um homem que se demite, foge e abandona.
E se a prática do aborto é sempre algo mau, doloroso
e traumático para a mulher, e portanto não
desejável, porquê apresentar a sua liberalização
(afinal a mulher irremediavelmente entregue à sua
sorte) como a melhor resposta que a sociedade lhe
oferece, apresentada como uma conquista
civilizacional?
Finalmente, mas não menos relevantes, são as dúvidas
que suscita a aplicação prática do "sim", caso
ganhasse. É que uma lei cria direitos e gera
legítimas expectativas quanto à sua aplicação. Como
daria o Serviço Nacional de Saúde resposta a este
novo direito? Com que meios? E em detrimento de que
outros direitos em saúde?
Sendo os recursos escassos, o "sim" vai legitimar a
redistribuição desses recursos em nome de uma
política pública paga com os nossos impostos. Vão
cortar na prevenção do cancro da mama ou do colo do
útero? Vão passar de quatro para oito anos a lista
de espera para o tratamento da infertilidade? Vão
deixar cair, ainda mais, as disposições da lei do
planeamento familiar, cortando consultas,
anticonceptivos gratuitos e informação e formação às
mulheres? Vão reduzir os médicos de família? Vão
desinvestir nos doentes crónicos? Vão fechar os
olhos às doenças neuro-degenerativas que afligem
crescentemente os idosos? Vão fechar serviços de
Saúde dificultando mais o acesso dos cidadãos? Como
vai o Ministério da Saúde pagar a contratualização
de clínicas privadas no caso, já dado como certo
pelo ministro, de o SNS não ter capacidade de
atendimento?
É a estas perguntas que é urgente dar resposta.
Ficamos à espera.