Expresso - 07 Jan 06
Casamento e discriminação
João Carlos Espada
«É
falso que o casamento heterossexual seja ilegitimamente
discriminatório. Em democracia, as minorias devem ser
respeitadas, mas não podem decidir em nome da maioria.»
O Expresso
da semana passada reabriu o debate sobre o casamento
entre homossexuais. Do ponto de vista da política
nacional e das eleições presidenciais, não é seguramente
uma questão prioritária - como, aliás, apenas um dos
candidatos sublinhou. Mas, no plano intelectual e
mediático, é uma questão que vem ganhando relevância. É
neste plano que me proponho discuti-la. Por limitações
de espaço, deixo por agora de lado as questões morais.
O principal argumento que tem sido apresentado para
justificar o casamento entre homossexuais é o da não
discriminação. A lei deve tratar os indivíduos como
iguais, independentemente da sua raça, sexo, opiniões
políticas ou credos religiosos. Logo, se a lei reconhece
o casamento heterossexual, terá de reconhecer igualmente
o casamento homossexual.
Este argumento contém, pelo menos, duas dificuldades.
Declive escorregadio
A primeira é a do proverbial «slippery slope» (declive
escorregadio). Se aceitássemos o referido argumento como
conclusivo - e não apenas como presuntivo - ficaria
aberto o caminho para termos de aceitar todas as
bizarrias como «casamentos», desde que isso fosse
reclamado consensualmente pelos interessados: os
«casamentos» poligâmicos, os «casamentos» poliândricos,
os «casamentos» incestuosos, etc. Por outras palavras, o
contrato específico a que chamamos casamento perderia
toda a sua especificidade e passaria a designar qualquer
coisa que um grupo minoritário, consensualmente entre
si, reclamasse como «casamento».
A segunda dificuldade - que, em rigor, explica a
dificuldade anterior - consiste em observar que o
argumento da não discriminação está formulado de forma
incompleta. Quando se diz, por exemplo, que um
empregador não pode discriminar candidatos a uma função
com base no sexo, o que se supõe é que, para essa
função, o sexo do candidato não é relevante. Mas, se o
sexo for considerado relevante para a função em causa, o
empregador pode e deve escolher homens em vez de
mulheres, ou mulheres em vez de homens. Sobretudo, pode
fazê-lo com toda a legitimidade, sem estar a promover
qualquer tipo de discriminação ilegítima.
Discriminações legítimas
É por isso que, por exemplo, nenhum homem protestará em
tribunal por não ter sido contratado para a função de
modelo de roupa feminina. Para essa função, o sexo é
considerado relevante. É também por isso que nenhum
adolescente protestará em tribunal por não lhe ser
concedida a carta de condução - ainda que possa
demonstrar saber conduzir. Para essa função, a idade é
considerada relevante.
Isto significa que, no caso do casamento - tal como no
dos modelos, ou das cartas de condução -, não basta
falar em discriminação. É preciso saber se a variável
discriminatória (o sexo ou a idade, nos exemplos
referidos) é ou não relevante para a função em apreço.
No caso do casamento, é preciso saber se o sexo dos
parceiros é ou não relevante para a definição de
casamento perante a lei.
Ouvir a maioria
Pode agora ser ripostado que o casamento é uma convenção
social e que, por isso, saber se o sexo dos parceiros é
ou não relevante é uma matéria de opinião e, por isso,
mutável. Será assim, até certo ponto. (Da mesma forma
que, até certo ponto, são convenções, e, portanto, até
certo ponto, matérias de opinião, os artefactos que
constituem uma civilização. Isto, por outro lado, já
sugere que as convenções - designadamente as convenções
civilizacionais -, pelo facto de serem convenções, não
são necessariamente arbitrárias ou equivalentes. Mas é
um facto que podem ser alteradas. Como também é um facto
que algumas dessas alterações conduziram no passado ao
declínio de civilizações).
Se for assim, porém, isso significa que é falso que o
casamento heterossexual seja, só por si, ilegitimamente
discriminatório contra os homossexuais. Em democracia,
resta saber se a maioria considera ou não que o sexo dos
parceiros é relevante para a definição do casamento
perante a lei. Em democracia, as minorias devem ser
respeitadas, mas não podem decidir em nome da maioria.
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