Referendo:
expectativasefactos
Maria José Nogueira Pinto
jurista
Quem se lembra, há um ano, aquando do referendo do
aborto, dos argumentos que se esgrimiam, das
verdades absolutas que se afirmavam? Depois disso, o
silêncio.
Porque será que já ninguém fala das mulheres que,
recentemente, fizeram abortos ilegais nas clínicas
que estão a ser investigadas? Serão presas? Serão
julgadas? E se forem, contarão com uma claque de
luxo ou, agora, deixam de ter importância e
tornam-se descartáveis?
Porque é que se desvaloriza, apressadamente, o facto
de haver mulheres que, num curtíssimo espaço de
tempo, recorreram aos serviços de Saúde para fazer
segundo aborto ao abrigo da nova lei? E para quê
usar eufemismos quantitativos, do tipo "episódios
esporádicos", sempre que os números se tornam
incómodos, pelo que revelam?
Como explicar que metade das mulheres que abortam
legalmente faltem à consulta de planeamento
familiar? E ninguém se interroga por que razão,
apesar da despenalização e de Portugal ser um dos
países europeus onde mais se consome a "pílula do
dia seguinte", as mulheres tomam remédios para o
estômago, para abortarem?
Muito se falou, então, em Saúde Pública. Agora, que
responsável vai explicar o efeito da prática
repetida do aborto na Saúde Pública e no sistema de
Saúde, na saúde das mulheres e no bolso do
contribuinte?
É que, um ano depois, contam os factos e não os
discursos, as tiradas libertárias ou a exploração do
miserabilismo. E, tal como se previa, esta lei -
liberalização do aborto até às dez semanas - não
veio resolver esses casos, essas situações que o SIM
evocou. Não acabou com o aborto clandestino, como se
vê; não levou as mulheres a reflectir na vantagem de
prevenir, como se vê; não as agarrou para o
planeamento familiar, como se vê; não as dissuadiu
de tomarem remédios para o estômago para abortarem
na sua própria intimidade e solidão, como se vê.
O dr. Jorge Branco, coordenador do Programa Nacional
de Saúde Reprodutiva, diz, a este propósito, uma
frase lapidar "A culpa não é do sistema. Alguma
coisa está errada com as senhoras..." Ora a culpa é,
em grande parte, do sistema, e há muito que sabemos
o que "está errado com as senhoras". Uma parte
significativa destes casos é constituída por
mulheres que não tiveram acesso a nada: educação,
formação, informação. São subprodutos do sistema,
com poucas ou nenhumas capacidades, é-lhes quase
impossível gerir a sua própria vida com autonomia,
formar decisões com uma liberdade responsável.
Figuram nas estatísticas nacionais a propósito da
pobreza persistente, da violência doméstica, do
desemprego de longa duração, do aumento do consumo
da droga ou do álcool. Duvido mesmo que conheçam ou
tenham entendido a lei. Outras, são jovens
desresponsabilizadas pelo "sistema", criadas num
caldo de cultura de "direitos" sem deveres, num
individualismo feroz, fruto de uma educação sem nexo
de causalidade, alheadas das consequências dos seus
actos.
Mas é verdade que o sistema de Saúde lhes deu tudo:
passou-as à frente de mulheres verdadeiramente
doentes, abriu-lhes blocos operatórios onde outras
estão em lista de espera, isentou-as de taxa
moderadora que uma mulher, vítima de violência
doméstica, por exemplo, tem de pagar.
Depois de um segundo referendo, igualmente
desertificado de eleitores, igualmente não
vinculativo, fez-se a lei. Que era para ser uma mas
foi outra, à boa maneira portuguesa, com a pressão
de quantos admiravam mais a clínica de Los Arcos do
que as leis alemãs. O aconselhamento da mulher na
fase da decisão, indispensável ao exercício livre do
novo direito, constituía também importante
ferramenta para iniciar um processo de formação e
informação e, deste modo, aproximá-la da rede de
Saúde. E embora a liberalização do aborto seja uma
medida totalmente desproporcionada para ensinar a
mulher a usar métodos anti-conceptivos, talvez se
pudesse esperar algum resultado, pelo menos neste
ponto.
Para o legislador, que viu esta lei como uma
requintada pincelada de modernidade, trata-se de
mais um engano! Nada pior que envernizar o
subdesenvolvimento humano, patente nestes factos. E
para as mulheres? Um presente envenenado.