Público -
9
Fev 06
Liberdade e lei, ética e moral
José Manuel Fernandes
Associar a responsabilidade à liberdade não é
limitar a liberdade, mas garantir a sua preservação
Na discussão que por aí vai sobre
os cartoons que retratam Maomé duas coisas
impressionam. A primeira é como se esquece demasiado
depressa a necessidade de defender sempre e em
quaisquer circunstâncias os valores fundamentais - e
universais - da liberdade, em nome quer da
necessidade de evitar eventuais excessos, quer da
importância de não "provocar" os intolerantes. A
segunda é a forma como se proclama que não deve ser
estabelecida qualquer relação entre esse direito
fundamental e um outro dever universal, o de agir
com sentido de responsabilidade.
Nenhuma lei deveria, de alguma forma, restringir a
liberdade de expressão. Nenhuma pode definir o que é
ou não blasfémia, tal como nenhuma deveria
criminalizar - como sucede nalguns países europeus -
a negação do Holocausto, a expressão de ideias
políticas antidemocráticas ou de preconceitos
raciais. A ideia de que se pode legislar limites à
liberdade que impeçam, por exemplo, que se ofenda
outrem é, em si mesma, aterradora. As únicas
limitações legais que podem ser consideradas são as
que visem actos de, pela palavra escrita ou falada,
ameaçar, intimidar ou incitar à utilização da
violência. Ou seja, a lei só poderia salvaguardar as
situações susceptíveis de colocar em risco valores
mais fundamentais, como o da vida.
Dito isto, será que sendo a liberdade de expressão
um direito, não deve ser utilizada de forma
responsável? Deve, mesmo que tal não possa ser
imposto por lei. A lei estabelece o que podemos
fazer, não o que devemos fazer. É, se quisermos, a
diferença entre ética e moral, pois se as leis
consagram as regras éticas por que se rege uma
sociedade, não podem impor-lhe uma moral. Mas se nas
sociedades não existirem alguns valores morais
mínimos, assumidos de forma consensual, o potencial
de conflito no seu interior pode tornar-se
explosivo. É por isso que os mais importantes
filósofos do liberalismo sublinharam a importância
da moral ou, se preferirmos, da virtude.
Para muitos este cuidado parece estranho, mas não é,
pois aquilo que hoje sabemos distinguir as
sociedades, e separá-las entre as que têm sucesso e
as que fracassam, não é apenas possuírem boas leis:
é serem construídas sobre uma cultura que forma
aquilo que modernamente se define como "capital
social".
É certo que o princípio das "virtudes sociais" está
muito mais presente nos filósofos do Iluminismo
escocês do que nos do Iluminismo francês, muito mais
preocupado com a Razão. Contudo, como ontem
recordava Martin Wolf no Financial Times, "a única
forma de alcançar a verdade [ou a Razão] é através
do debate aberto e plural". Daí que não possam ser
estabelecidos limites à liberdade de divergir, mesmo
quando isso pode ofender. Mas daí também a
necessidade de termos noção de que se "a liberdade é
um direito com que nascemos, a autocontenção é uma
medida da nossa maturidade".
Quer isto dizer que o facto de podermos dizer,
escrever ou editar virtualmente tudo o que
entendermos, e blasfemar, provocar ou ofender sem
que para tal seja aceitável existirem limites
legais, isso não implica que o devamos fazer com a
mesma irresponsabilidade de uma criança mimada. A
autocontenção é matéria da nossa consciência
individual e não pode ser definida por governos ou
por ministros com opiniões sobre o que é ou não é a
licenciosidade. Mas sem uma cultura de "virtudes
sociais" a liberdade que nos é devida quando
nascemos pode acabar ameaçada pela corrosão dos
laços sociais. É por isso que associar a
responsabilidade à liberdade não é limitar a
liberdade, mas garantir a sua preservação.