A ciência económica vai nua? João Ferreira do Amaral, Manuel Branco, Sandro
Mendonça, Carlos Pimenta e José Reis
Esta crise é também um colapso teórico, uma falência
de um modo de ver. A má teoria é um elemento central
da crise
Os tempos de crise tornaram-se tempos de acção
inovadora, inesperada, imprevista. Por todo o mundo
tem-se observado um movimento por parte dos Governos
que tentam estabilizar a situação e revertê-la.
Predominam políticas conjunturais, mas, caso
singular à escala global, assiste--se à tomada de
iniciativas coordenadas para consertar uma
arquitectura financeira internacional demasiado
permeável a falhanços sistémicos.
Começa, por isso mesmo, a ser altura de reflectir
sobre as lições que a própria teoria económica deve
retirar desta experiência, a qual, infelizmente,
está ainda longe de ter terminado. A teoria
económica dominante é profundamente insensível à
realidade. Constitui, em geral, uma abstracção
desatenta e trata os acontecimentos difíceis como um
problema que não é dela. Na melhor das hipóteses,
esforça-se por demonstrar, perante a turbulência e a
crise, que não se passa nada de anormal e que os
problemas se reduzem a erros humanos ou pormenores
transitórios, passageiros, sempre devidamente
previstos.
É das escolas de Economia e Gestão de todo mundo,
sobretudo dos Estados Unidos, que tem saído uma boa
parte dos operadores dos mercados financeiros e
gestores de topo que lentamente acumularam decisões
insustentáveis culminando na actual crise. Esta
crise é, também por isso, um colapso teórico, uma
falência de um modo de ver. A má teoria é,
evidentemente, um elemento central da crise.
A realidade é o verdadeiro teste, por vezes
doloroso, das ideias. E, neste momento, é o rigor e
a relevância da realidade que deve falar mais alto
do que as premissas e os modelos ainda em vigor nos
manuais de Economia.
A teoria económica convencional pressupõe, mais do
que demonstra, que os agentes optimizam e os
mercados harmonizam. A ideia de "mão invisível" é
uma expressão usada uma só vez por Adam Smith, o
filósofo celebrado como o pai da ciência económica,
nas muitas páginas de A Riqueza das Nações. No
entanto, Smith começa o seu livro por sublinhar a
importância crucial da organização e do
conhecimento, algo que os manuais modernos preferem
ignorar. E importa lembrar que, para além deste, ele
escreveu outro grande livro: A Teoria dos
Sentimentos Morais. Muito boa gente acha que só o
primeiro é ciência, é economia.
Os livros-texto que hoje dominam falam de
racionalidade e de equilíbrio, abstracções
insensatas que a prova empírica contesta com
violência. Teorias deficientes têm, pois, ocupado o
lugar das mais prudentes, das mais capazes de
perceber que o económico não é uma esfera
autonomizável do institucional, do político, do
social, do psicológico. No passado era mais fácil
encontrar manuais mais pluralistas e sensíveis às
estruturas institucionais da realidade, mais
baseados em lições retiradas de padrões históricos e
não somente em deduções lógico-matemáticas. O ensino
dominante não tem municiado os estudantes para
conhecerem o mundo real e para o interpretarem, para
saberem que comportamentos emergem, que sistemas
institucionais se confrontam, que valores estão em
crise e quais os que se reforçam.
Não é, portanto, ousado supor que no ensino da
Economia e da Gestão tudo ainda continua como
dantes, alheio a uma crise talvez descrita como mera
mas rara anomalia, numa atitude fechada e defensiva
face aos desafios do pensamento crítico. No entanto,
não podemos esquecer que os operacionais dos
mercados têm sido formados neste contexto
intelectual. Ou seja, dificilmente o ensino da
Economia e da Gestão não estará implicado nas causas
da crise.
Com estes acontecimentos, as teorias que sabem
acolher a incerteza, a dinâmica da evolução
estrutural e, sobretudo, a noção de que a economia
funciona de um modo complexo, da qual fazem parte os
mercados mas também numerosas outras instituições,
poderão assumir maior protagonismo. Ganha peso a
convicção de que os comportamentos económicos, em
vez de serem o resultado óbvio de respostas a
incentivos, são sempre comportamentos limitados,
provisoriamente ajustados às circunstâncias e aos
contextos. Quer dizer, são comportamentos humanos.
Há, portanto, necessidade de responsabilidade e
realismo crítico no ensino das Ciências Económicas e
Empresariais, esses campos em evolução e sempre
politicamente carregados. Algumas editoras têm,
aliás, procurado reflectir a procura por maior
pluralismo no ensino da Economia. Referimo-nos, por
exemplo, às abordagens neo/pós-keynesianas,
evolucionistas e institucionalistas - um portfólio
de perspectivas para lidar com um mundo económico
complexo, multidimensional e persistentemente
surpreendente. É urgente que a academia as tire da
sombra e lhes atribua o devido destaque. João
Ferreira do Amaral é professor do ISEG; Manuel
Branco é professor da Universidade de Évora; Sandro
Mendonça é professor do ISCTE; Carlos Pimenta é
professor da Universidade do Porto e José Reis é
professor da Universidade de Coimbra