"Eduquês" escondido com ministra de fora
Guilherme Valente
A ideologia que se implantou, aberta ou
insidiosamente, nas escolas portuguesas nivela por
baixo, cretiniza, gerando a frustração e o abandono,
aceitando a indisciplina e, por isso, semeando violência
e intolerância, reproduzindo e agravando, ela sim, as
desigualdades, condenando à exclusão e à pobreza as
crianças que nasceram na exclusão e na pobreza
CO aspecto mais paradoxal de tudo
isto é que a escola nova é apresentada como democrática,
quando, na realidade, está destinada a perpetuar as
diferenças sociais.
Antonio Gramsci*
onfiar ao corruptor a recuperação do corrompido: é algo
idêntico aquilo que a ministra da Educação acaba de
fazer atribuindo a formação contínua (recuperação) dos
professores do ensino básico para o ensino da matemática
às Escolas Superiores de Educação... que os "formaram".
Será que os mesmos realizarão agora numas dezenas de
horas o que não foram capazes de fazer em quatro anos?
Tendo de início iludido os mais inadvertidos no que
respeita à identificação com essas correntes pedagógicas
irracionalistas, e tendo mesmo conquistado alguma
simpatia por algumas medidas óbvias de carácter
administrativo que tomou, a ministra manifesta agora,
inequivocamente, a sua ligação ao grupo do eduquês
dominante no sector da educação do PS - representado na
própria equipa governativa pelo seu elemento mais
interveniente, o secretário de Estado Walter Lemos - e à
sua clientela com forte implantação nas escolas
superiores de educação.
Se é certo que o problema do ensino da matemática começa
no básico e tem a ver com a formação dos professores,
com os conhecimentos e a cultura que transportam para a
escola, é então evidente ser decisivo intervir nas
instituições onde esses professores são formados,
criando, como solução de mudança, um sistema de exames e
selecção dos candidatos à docência por elas formados.
Vou fazer uma previsão: nos próximos anos o ensino da
matemática vai piorar e os resultados reflectirão,
naturalmente, essa realidade. Isto, claro, se não houver
supressão da avaliação ou manipulação dos resultados
As teorias pedagógicas não funcionam? Baixa-se a
exigência e acaba-se com os exames. Os meninos não sabem
matemática? Acaba-se com a matemática: "um programa de
combate ao insucesso em Matemática deverá [...] reduzir
o papel que a Matemática tem como instrumento de
selecção"**(sic).
Leia-se o Programa de Formação Contínua em Matemática
para Professores do 1.º Ciclo agora redigido. Obrigado a
recuar pela evidência da catástrofe a que conduziu o
sistema, o eduquês tem estado mais discreto, mas esse
documento não engana quem lhe conhece os tiques, "as
ideias apresentadas sem estudos empíricos nem dados
científicos que as sustentem, repetidas à exaustão em
discursos interpretativos, numa espiral discursiva
centrada em si própria"***, de que são exemplo recente
as intervenções do Professor António Nóvoa, na RTP, ao
lado da ministra, e, no Diário de Notícias, a afirmar
ser aceitável a indisciplina nas escolas. Um documento a
lembrar os inúmeros papéis produzidos no ME em todos
estes anos de tragédia educativa. Quem o ler sem estar
dentro do assunto pensará que se trata de ensinar a
matemática mais avançada e complexa. Seria ridículo se
não fosse trágico. Porque aquilo de que se trata é de
fazer com que os professores do ensino básico dominem a
matemática necessária para ensinarem às crianças do 1.º
ciclo (a antiga escola primária, sublinhe-se) a
matemática adequada, procurando transmitir-lhes o gosto
pela disciplina, com a abertura de espírito suficiente
para não prejudicarem o interesse e a curiosidade dos
alunos que revelarem maior aptidão e interesse.
Independentemente das intenções dos seus promotores,
suponho, a intervenção prevista nesse documento revelará
mais uma vez os efeitos das correntes pedagógicas que
vêm confundindo, desmotivando e frustrando professores e
alunos e, no caso deste grau de ensino, impedindo as
crianças de, na altura própria, adquirirem os
instrumentos indispensáveis para progredirem nos níveis
de ensino seguintes. Com mais do mesmo, os pobres
docentes vão passar a saber ainda menos o que devem
ensinar e os alunos o que devem aprender. E a
qualificação dos Portugueses não passará de um propósito
sempre adiado.
O défice é de conhecimentos fundamentais, de valorização
do saber, de exigência e responsabilidade, devendo a
pedagogia assumir a dimensão e o papel que a tornam
útil. Que grau de intervenção é conferido aos bons
professores de Matemática e aos representantes da boa e
indispensável pedagogia que certamente haverá nas
escolas superiores de educação? A pedagogia não pode
substituir o estudo e o trabalho, quer dos professores,
quer dos alunos. Os professores não podem só aprender a
ensinar, têm de aprender pelo menos o que terão de
ensinar. Tal como os alunos não podem só "aprender a
aprender" (?!), mas têm de adquirir conhecimentos, só
assim aprendendo a aprender e aprendendo a ensinar.
O falhanço dramático desta versão portuguesa da
pedagogia dita nova, a imposição destas teorias
delirantes, obrigaram, como se sabe, à descida da
exigência, à depreciação do saber que conta, ao
menosprezo do mérito de professores e alunos, à
imposição generalizada de uma escola de "faz de conta".
E é aqui que os "pedagogos", muitos deles sem
compreenderem aonde podem levar as posições que
sustentam, passam a servir uma ideologia
anti-racionalista à qual não preocupam os resultados e o
insucesso escolares. Para essa ideologia, que vê na
escola "a escola do conhecimento e do mérito burgueses",
as crianças das classes sociais mais desfavorecidas
estarão condenadas irremediavelmente ao insucesso. Logo,
para ela, o saber, os conhecimentos que contam, a
exigência e o mérito não são mais do que reveladores
indesejáveis da distinção, da desigualdade, que a
escola, afinal, apenas reproduzirá. Nada de mais
verificadamente errado.
As desigualdades sociais e pessoais são, como é óbvio,
condicionantes - por isso a boa escola apoia
especificamente os mais desfavorecidos para que se
realize a equidade e todos possam ir tão longe quanto
possível - mas não são um estigma.
Querendo tornar todos iguais, a ideologia que se
implantou, aberta ou insidiosamente, nas escolas
portuguesas nivela por baixo, cretiniza, gerando a
frustração e o abandono, aceitando a indisciplina e, por
isso, semeando violência e intolerância, reproduzindo e
agravando, ela sim, as desigualdades, condenando à
exclusão e à pobreza as crianças que nasceram na
exclusão e na pobreza. Impedindo que a escola seja, no
grau que é justo e imperativo que seja, o ascensor
cultural e social que só a escola pode ser. E numa
escola dominada por esta ideologia, que diferença farão
a alteração de programas, currículos e livros, a duração
das aulas, as sucessivas reformas e mudança de
ministros?
É esta a questão central da educação. Enquanto não for
frontal e declaradamente enfrentada não haverá mudança
no sistema educativo e Portugal não progredirá. As
medidas administrativas que têm sido elogiadas à
ministra da Educação, adequadas ou discutíveis, são
paliativos, mudarão muito pouco, não justificam a
esperança. Editor
* Antonio Gramsci, Cadernos da Prisão, XXIXX, 1932,
** João Pedro da Ponte, "O ensino da matemática em
Portugal: uma prioridade educativa?", O Ensino da
Matemática: Situação e Perspectivas, Lisboa, CNE, 2003,
p. 52.
*** Nuno Crato, O "Eduquês" em Discurso Directo (no
prelo), uma selecção de textos e intervenções que
documentam o que vem sendo afirmado sobre as correntes
pedagógicas em causa.