Abril de 2008 marca uma mudança na percepção do
problema da fome e da agricultura. "O século XXI
acaba de começar e tudo mudou desde há um ano",
afirma o agrónomo francês Bruno Parmentier. O
fim-de-semana de 12-13 de Abril assinala a "tomada
de consciência pela comunidade internacional" de que
a fome no mundo é uma bomba-relógio, disse uma
televisão. Referia-se às dramáticas e inéditas
declarações dos directores do Banco Mundial, BM, e
do Fundo Monetário Internacional, FMI.
"Calculamos que a duplicação dos preços alimentares
no decurso destes três anos pode lançar na miséria
profunda 100 milhões de indivíduos que vivem nos
países pobres", declarou o americano Robert Zoellick,
do BM. O francês Dominique Strauss-Kahn, do FMI,
advertiu que, se preços continuarem a subir, "as
consequências serão terríveis (...) e, por vezes,
este género de situações acaba em guerras". Teme,
como Zoellick, que os progressos feitos nos últimos
dez anos no desenvolvimento venham a ser
"completamente destruídos". O senegalês Jacques
Diouf, da FAO, organização da ONU para os alimentos
e a agricultura, corrobora o pessimismo: "Não vejo
razões objectivas para uma baixa de preços. Devemos
esperar novos motins de fome."
Alarmista é também o cálculo do Fundo Internacional
de Desenvolvimento Agrícola, da ONU: cada aumento de
um por cento no preço dos alimentos de base coloca
em insegurança alimentar 16 milhões de pessoas. Em
2025, poderemos ter 1200 milhões de pessoas em
situação de fome crónica, mais 600 mil do que o
previsto. Os países em maior risco seriam a Eritreia,
o Sudão, a Serra Leoa, o Haiti, o Burundi, o
Zimbabwe... e a Geórgia.
factor decisivo nesta tomada de consciência foram os
motins. Começaram em 2007. Cresceram em Março e
Abril, foram reprimidos e só pararam perante as
primeiras medidas tomadas pelos governos. Não foram
um fenómeno de grande dimensão, antes
surpreendentemente esparsos e reduzidos, mas de
largo alcance. Pairam como um fantasma sobre os
Estados e a comunidade internacional, ameaçando
desestabilizar três continentes. A fome não atinge
apenas os países muito pobres. Ameaça os equilíbrios
sociais básicos de países intermédios que não
dispõem de auto-suficiência alimentar.
Desta vez, não se trata de calamidades naturais ou
guerras civis, mas de uma fome causada pela
vertiginosa subida dos preços. Quem se revoltou não
foram os 845 milhões que hoje sofrem de "malnutrição
crónica", mas aqueles que não se resignam a nela
cair e se batem pelo futuro dos filhos.
Os governos temem a generalização dos tumultos,
pois, mesmo que as ajudas sejam rápidas, as causas
permanecem. E receiam, acima de tudo, o contágio das
classes médias, também afectadas, mesmo se de uma
forma menos dramática. É que, nesse caso, se
passaria do motim à revolta social e política.
Os motins forçaram os governos a tomar medidas: em
muitos países o pão ou o arroz foram subsidiados;
perante o alarme, os governos de países produtores
suspenderam ou reduziram as exportações; em muitos,
a tropa foi posta na rua, a guardar padarias ou
armazéns de arroz; a comunidade internacional
começou a organizar uma ajuda de emergência,
enquanto se espera uma retoma da exportação de
cereais pelos países que têm reservas.
A azáfama das medidas de emergência não pode
esconder que se trata de um fenómeno de longa
duração, de alto risco e que vai fazer subir a
conflitualidade internacional, pois os interesses
são muito contraditórios.
Países como as Filipinas, a Indonésia, o Egipto ou a
Nigéria sabem que a sua segurança alimentar está
ameaçada. Outros, como o Vietname, a Tailândia ou a
Índia, os maiores exportadores de arroz, tratam de
preservar as suas reservas de forma racional: têm de
garantir o abastecimento do mercado interno e
oscilam entre ajudar os vizinhos, para segurança
própria, ou maximizar o lucro. A redução das
exportações funcionou como factor de perturbação,
criando pânico e provocando uma situação crítica nos
países importadores, dos africanos às Filipinas ou à
Bolívia.
Para lá destas reacções proteccionistas,
essencialmente conjunturais, reemerge a noção de
"soberania alimentar". Os Estados não abdicam da
garantir a segurança da mais primária das
necessidades das suas populações e defender as suas
agriculturas, tal como a Europa e os EUA o fazem. O
americano Institute for Agriculture and Trade Policy
aconselha "a repensar urgentemente os papéis
respectivos dos mercados e dos governos".
Outra coisa são as regras do comércio agrícola e a
sua desigualdade, a começar pelos proteccionismos
europeu e americano. Outra ainda, os antigos diktats
de organizações como o Banco Mundial, que ajudaram a
destruir a agricultura tradicional nos países pobres
para impor culturas de exportação. O debate vai
endurecer: entre Norte e Sul, entre exportadores e
importadores, e dentro da UE, onde a forma actual da
Política Agrícola Comum, PAC, se tornou anacrónica.
agricultura regressa ao primeiro plano da economia
política. "O planeta redescobre brutalmente que a
agricultura permanece um sector estratégico",
escreve o economista e historiador francês Nicolas
Baverez. Le Monde titulou: La revanche de
l"agriculture. O Banco Mundial faz autocrítica: nos
países pobres, a agricultura recebe quatro por cento
dos investimentos públicos e da ajuda ao
investimento.
As questões mais interessantes surgem do lado dos
agrónomos, que têm a consciência de estarmos perante
uma mudança de paradigma. Um relatório do
International Assessment of Agricultural Science and
Tecnology for Development, IAASTD, aprovado a 12 de
Abril em Joanesburgo, por 59 governos, "toma
consciência" da perenidade da grave pobreza rural,
ligada à falta de apoio das políticas públicas para
a agricultura, quando novos problemas surgem no
horizonte: mudança climática, escassez de água,
concorrência dos biocombustíveis, erosão da
biodiversidade.
Sublinha-se uma mudança de óptica: "O IAASTD propõe
uma reorientação em torno dos saberes locais e
comunitários, a fim de reencontrar uma
auto-suficiência alimentar. Não podemos apostar
apenas no factor tecnológico." Nem nas culturas de
exportação.
Após a revolução verde intensiva do século XX,
chegou-se ao fim de um ciclo: "É preciso continuar a
produzir mais com menos e reinventar novas técnicas.
É um enorme desafio, precisamos de um Plano Marshall
para a agricultura", resume Parmentier.
O economista indiano Amartya Sen frisou (em 2002) a
necessidade de não esquecer a dimensão política da
fome. A democracia é dos melhores antídotos: "Não é
fácil ganhar eleições depois de fomes, nem fácil
suportar a crítica dos partidos da oposição e dos
jornais."
Referia o paradoxal empobrecimento do Zimbabwe.