Público - 27 Abr 08

 

A vingança da agricultura
Jorge Almeida Fernandes

 

Abril de 2008 marca uma mudança na percepção do problema da fome e da agricultura. "O século XXI acaba de começar e tudo mudou desde há um ano", afirma o agrónomo francês Bruno Parmentier. O fim-de-semana de 12-13 de Abril assinala a "tomada de consciência pela comunidade internacional" de que a fome no mundo é uma bomba-relógio, disse uma televisão. Referia-se às dramáticas e inéditas declarações dos directores do Banco Mundial, BM, e do Fundo Monetário Internacional, FMI.

 

"Calculamos que a duplicação dos preços alimentares no decurso destes três anos pode lançar na miséria profunda 100 milhões de indivíduos que vivem nos países pobres", declarou o americano Robert Zoellick, do BM. O francês Dominique Strauss-Kahn, do FMI, advertiu que, se preços continuarem a subir, "as consequências serão terríveis (...) e, por vezes, este género de situações acaba em guerras". Teme, como Zoellick, que os progressos feitos nos últimos dez anos no desenvolvimento venham a ser "completamente destruídos". O senegalês Jacques Diouf, da FAO, organização da ONU para os alimentos e a agricultura, corrobora o pessimismo: "Não vejo razões objectivas para uma baixa de preços. Devemos esperar novos motins de fome."

 

Alarmista é também o cálculo do Fundo Internacional de Desenvolvimento Agrícola, da ONU: cada aumento de um por cento no preço dos alimentos de base coloca em insegurança alimentar 16 milhões de pessoas. Em 2025, poderemos ter 1200 milhões de pessoas em situação de fome crónica, mais 600 mil do que o previsto. Os países em maior risco seriam a Eritreia, o Sudão, a Serra Leoa, o Haiti, o Burundi, o Zimbabwe... e a Geórgia.

 

factor decisivo nesta tomada de consciência foram os motins. Começaram em 2007. Cresceram em Março e Abril, foram reprimidos e só pararam perante as primeiras medidas tomadas pelos governos. Não foram um fenómeno de grande dimensão, antes surpreendentemente esparsos e reduzidos, mas de largo alcance. Pairam como um fantasma sobre os Estados e a comunidade internacional, ameaçando desestabilizar três continentes. A fome não atinge apenas os países muito pobres. Ameaça os equilíbrios sociais básicos de países intermédios que não dispõem de auto-suficiência alimentar.

 

Desta vez, não se trata de calamidades naturais ou guerras civis, mas de uma fome causada pela vertiginosa subida dos preços. Quem se revoltou não foram os 845 milhões que hoje sofrem de "malnutrição crónica", mas aqueles que não se resignam a nela cair e se batem pelo futuro dos filhos.

 

Os governos temem a generalização dos tumultos, pois, mesmo que as ajudas sejam rápidas, as causas permanecem. E receiam, acima de tudo, o contágio das classes médias, também afectadas, mesmo se de uma forma menos dramática. É que, nesse caso, se passaria do motim à revolta social e política.

 

Os motins forçaram os governos a tomar medidas: em muitos países o pão ou o arroz foram subsidiados; perante o alarme, os governos de países produtores suspenderam ou reduziram as exportações; em muitos, a tropa foi posta na rua, a guardar padarias ou armazéns de arroz; a comunidade internacional começou a organizar uma ajuda de emergência, enquanto se espera uma retoma da exportação de cereais pelos países que têm reservas.

 

A azáfama das medidas de emergência não pode esconder que se trata de um fenómeno de longa duração, de alto risco e que vai fazer subir a conflitualidade internacional, pois os interesses são muito contraditórios.

 

Países como as Filipinas, a Indonésia, o Egipto ou a Nigéria sabem que a sua segurança alimentar está ameaçada. Outros, como o Vietname, a Tailândia ou a Índia, os maiores exportadores de arroz, tratam de preservar as suas reservas de forma racional: têm de garantir o abastecimento do mercado interno e oscilam entre ajudar os vizinhos, para segurança própria, ou maximizar o lucro. A redução das exportações funcionou como factor de perturbação, criando pânico e provocando uma situação crítica nos países importadores, dos africanos às Filipinas ou à Bolívia.

 

Para lá destas reacções proteccionistas, essencialmente conjunturais, reemerge a noção de "soberania alimentar". Os Estados não abdicam da garantir a segurança da mais primária das necessidades das suas populações e defender as suas agriculturas, tal como a Europa e os EUA o fazem. O americano Institute for Agriculture and Trade Policy aconselha "a repensar urgentemente os papéis respectivos dos mercados e dos governos".

 

Outra coisa são as regras do comércio agrícola e a sua desigualdade, a começar pelos proteccionismos europeu e americano. Outra ainda, os antigos diktats de organizações como o Banco Mundial, que ajudaram a destruir a agricultura tradicional nos países pobres para impor culturas de exportação. O debate vai endurecer: entre Norte e Sul, entre exportadores e importadores, e dentro da UE, onde a forma actual da Política Agrícola Comum, PAC, se tornou anacrónica.

 

agricultura regressa ao primeiro plano da economia política. "O planeta redescobre brutalmente que a agricultura permanece um sector estratégico", escreve o economista e historiador francês Nicolas Baverez. Le Monde titulou: La revanche de l"agriculture. O Banco Mundial faz autocrítica: nos países pobres, a agricultura recebe quatro por cento dos investimentos públicos e da ajuda ao investimento.

 

As questões mais interessantes surgem do lado dos agrónomos, que têm a consciência de estarmos perante uma mudança de paradigma. Um relatório do International Assessment of Agricultural Science and Tecnology for Development, IAASTD, aprovado a 12 de Abril em Joanesburgo, por 59 governos, "toma consciência" da perenidade da grave pobreza rural, ligada à falta de apoio das políticas públicas para a agricultura, quando novos problemas surgem no horizonte: mudança climática, escassez de água, concorrência dos biocombustíveis, erosão da biodiversidade.

 

Sublinha-se uma mudança de óptica: "O IAASTD propõe uma reorientação em torno dos saberes locais e comunitários, a fim de reencontrar uma auto-suficiência alimentar. Não podemos apostar apenas no factor tecnológico." Nem nas culturas de exportação.

 

Após a revolução verde intensiva do século XX, chegou-se ao fim de um ciclo: "É preciso continuar a produzir mais com menos e reinventar novas técnicas. É um enorme desafio, precisamos de um Plano Marshall para a agricultura", resume Parmentier.

 

O economista indiano Amartya Sen frisou (em 2002) a necessidade de não esquecer a dimensão política da fome. A democracia é dos melhores antídotos: "Não é fácil ganhar eleições depois de fomes, nem fácil suportar a crítica dos partidos da oposição e dos jornais."
Referia o paradoxal empobrecimento do Zimbabwe.