O país afunda-se mas o circo não pára
José Manuel Fernandes
Roteiro de duas semanas de volta ao país irreal de
Sócrates de inauguração em inauguração
No dia 28 de Agosto, um sábado, José Sócrates
inaugurou um pedaço de estrada de 14 quilómetros.
Entre Oleiros e Proença-a-Nova. Esses
quilometrozitos, disse, serão muito importantes
"para o dinamismo económico e para a segurança
rodoviária"...
Três dias depois, a 31 de Agosto, foi à inauguração
de um jardim-de-infância num hipermercado Jumbo.
Quem pagou foi o grupo privado, mas Sócrates
gabou-se de ter chamado a atenção "para a
necessidade de se resolver o problema crónico da
falta de investimento em creches".
No dia seguinte voltou a uma creche, desta vez em
Torres Vedras. A instituição era de uma IPSS, e não
do Estado, mas o primeiro-ministro foi lá para falar
"dos desafios do Estado social moderno", falando em
"investimento do Governo" quando este nem chegou a
cobrir um terço dos custos. De resto, das 342
creches abertas entre 2004 e 2008 só duas são
públicas, as restantes ou são privadas, ou pertencem
a IPSS. De Torres Vedras o primeiro-ministro saiu a
correr para a Líbia, onde foi o convidado de honra
de Kadhafi nas cerimónias do 41.º aniversário do
regime, onde esteve sempre ao lado do ditador,
partilhando o mesmo automóvel.
A 3 de Setembro foi a vez de ir a Braga, agora para
inaugurar um hotel. Aproveitou para falar da
"recuperação da economia". Já o dia 4 foi dia de
comício. O local escolhido foi um jardim público em
Matosinhos que, de acordo com os moradores, estava
pronto há vários meses mas estivera fechado com um
gradeamento que só desapareceu para montar o palco
de Sócrates.
Dia 7 voltou a um jardim-de-infância, desta feita em
Lisboa, para celebrar "um feito": Portugal aparecer
no relatório da OCDE sobre Educação com uma taxa de
cobertura do pré-escolar superior à média. Mas não
comentou o resto do relatório da OCDE, que não era
nada favorável a Portugal e ao que cá se fez nos
últimos anos.
A 8 de Setembro Sócrates trocou o pré-escolar pelo
ensino bási- co e foi até Paredes inaugurar um
centro escolar. O tema foi o encerramento de escolas
do básico, um processo que celebrou de forma tão
entusiasmada que, ao ser confrontado com os
conflitos com algumas autarquias e as obras
atrasadas, sentenciou: "Não estou preocupado com
excepções."
A 9 de Setembro escolheu Alverca onde, talvez
inspirado pelos fumos das fábricas, falou sobre
cursos profissionais.
Depois, a 10 de Setembro, regressou à Escola
Secundária de Pedro Nunes, onde já tinha estado em
2008 e 2009, mas parece haver sempre coisas novas
para ver. Foi lá que anunciou cem-inaugurações-cem
de escolas para o 5 de Outubro, invocando a aposta
da República na Educação. Só que essa aposta foi
sobretudo retórica, tendo-se traduzido num enorme
fiasco: entre 1911 e 1930 a percentagem de
analfabetos baixou apenas sete pontos percentuais
(de 75 para 68 por cento) enquanto, nos dez anos
seguintes de Estado Novo, baixaria mais de oito
pontos (de 68 para menos de 60 por cento).
No dia 13 rumou ao Funchal - um amor recente -, onde
fez companhia a Alberto João Jardim na abertura do
Ano Académico da Universidade da Madeira. No dia
seguinte já estava no Porto, no Instituto Superior
de Engenharia, onde foi surpreendido pelos
estudantes, que lhe entregaram uma medalha "por
fazer com que Portugal seja o país da Europa onde as
famílias mais gastam com educação".
Este frenesim e esta sucessão de banalidades ditadas
para a comunicação social é todo um estilo de
governação. Todos os dias tem de haver um evento
para consumo para garantir uns minutos no telejornal,
naquilo a que já chamaram os "momentos Chavez" de
Sócrates, traduzindo uma forma de fazer política
onde tudo é espectáculo e acções de propaganda,
alimentadas por citações de estatísticas à la carte,
onde tudo visa centrar sobre o "líder" e sobre o seu
país irreal a atenção da comunicação social. Ao
mesmo tempo instala-se o diálogo e faz-se da fuga em
frente uma forma de evitar governar e, sobretudo, de
se ser confrontado com os limites e os desastres da
governação.
Até porque, entretanto, há um país teimosamente
real. Nestas semanas ficámos a saber que Portugal
caiu mais três lugares no índice de competitividade
do Fórum Económico Mundial (já recuamos 18 lugares
desde que Sócrates é primeiro-ministro) e caiu
outros dois lugares no ranking dos melhores países
para fazer negócios da revista Forbes. São dois
indicadores preocupantes de como estamos a perder a
corrida e de como nos será cada vez mais difícil
sair da crise. Pelo que não surpreende que as
previsões revistas da Comissão Europeia confirmem a
anemia portuguesa: em 2010, o crescimento na UE foi
revisto em alta, para 1,8 por cento, mas o português
deverá ficar abaixo de um por cento. Pior: enquanto
no segundo trimestre o emprego na União Europeia
recuou 0,6 por cento, em Portugal caiu 1,5 por
cento, permitindo que no final de Julho tivéssemos a
quarta mais elevada taxa de desemprego de toda a
OCDE.
Entretanto, a despesa pública continua a aumentar,
como se estivéssemos numa nave de loucos. O país
endivida-se ao ritmo de 2,5 milhões de euros por
hora, os juros estão em máximos históricos e crescem
os rumores de que o FMI já está à porta.
Numa situação destas, o que o país devia estar a
discutir, com seriedade, era se no Orçamento de 2011
a redução do défice se fará por mais subidas de
impostos ou pela redução da despesa, pois isso não é
indiferente para a saúde da economia, mas todos se
entretêm em jogos florais sobre o destino de uma
negociação que tem de existir - o Governo é
minoritário -, mas que ainda nem sequer começou.
Sendo que, como escreveu esta semana Vítor Bento, ao
estar a "dramatizar a não aprovação do novo
Orçamento" está-se "a enviesar o processo negocial"
e a aceitar a chantagem de quem não recebeu dos
portugueses mandato para governar sozinho.
Em Portugal nunca se aprende nada. E o que mais
aflige é como o país saltita, tal como uma barata
tonta, de "caso" em "caso", sem sequer perceber a
irrealidade do mundo que o primeiro-ministro lhe
procura apresentar no seu corrupio de inauguração em
inauguração. É que se há um ano nos apresentaram uma
narrativa política (sobre a irrelevância do
endividamento do país face à importância dos
investimentos públicos, por exemplo) que se revelou
totalmente falsa mal passaram as eleições, agora
criaram outra narrativa irreal (a de que é mantendo
tudo como está que se salva o Estado social) e ainda
há quem lhes dê o benefício da dúvida. Mesmo depois
de ouvir a ministra da Cultura dizer o contrário ao
avisar que "o Estado social encontrou o seu
limite"...
Nas óperas-bufas ainda sorrimos - neste país-bufo já
só rangemos os dentes. Jornalista