Votar é hoje uma actividade normal. No entanto, a
lembrança dos tempos heróicos ainda cria um clima de
romance e solenidade que envolve todo o processo
eleitoral. Assim, a sua verdade pode acabar
distorcida por mitos ingénuos. Mas o próprio
princípio democrático convida-nos a desafiar tais
mitos e repor a verdade.
A grande maioria das pessoas pensa exercer o seu
direito de forma consciente, séria, racional. Todos
dizem votar com a cabeça. Isso é pouco provável.
Primeiro quase ninguém lê os programas eleitorais.
Isso acaba por ser sensato, porque a relação entre
tais documentos e qualquer futuro programa de
Governo, para não falar das políticas praticadas, é
mínima. Dos votos à posse haverá tantos
compromissos, negociações, cedências e recuos que as
promessas de campanha acabam esquecidas. Mas, mesmo
que não acabassem, um voto mesmo racional seria
difícil, porque a realidade nem sempre encaixa nas
lendas que fundam a sociedade democrática.
Por exemplo, será que um Governo de maioria assegura
governabilidade? Dos 17 executivos constitucionais,
dez tiveram maioria parlamentar, mas desses só três
acabaram o mandato. Na nossa democracia, o caso
dominante é o dos sete governos maioritários que não
terminaram a tarefa. Depois vêm os seis minoritários
que também caíram e só no fim os que cumpriram o
compromisso, um deles minoritário. Curiosamente, se
somarmos os tempos de vigência, estes quatro
executivos com êxito governaram um período
praticamente igual ao dos 13 instáveis.
Outra grave confusão vem da atitude política
dominante. Portugal em geral, e a Esquerda em
particular, gostam muito de um sistema estatista,
público, governamentalizado. Todos os regimes dos
últimos 200 anos - absolutismo, liberalismo,
república, salazarismo e democracia - defenderam o
poder paternalista na saúde, educação, economia,
etc. Mas depois Portugal em geral e a esquerda em
particular criticam violentamente a má qualidade
daquilo que o Estado realmente faz.
Todos gostam de um Governo influente, mas nunca do
Governo que temos. Os que apregoam a urgência de uma
política serão os primeiros a atacar essa mesma
estratégia quando concretizada. Insultam--se com
vigor organismos, sistemas e intervenções que, em
teoria, se promovem com paixão. Se o Estado é tão
mau como os partidos dizem, por que razão não são
todos neoliberais? Porque insistem em sugerir
burocracias e políticas que eles mesmos vão achar
horríveis na prática? Assim, não admira que os
governos caiam.
Se não se pode votar com a cabeça, então vota-se
como? Abandonando o mito da escolha cerebral que
todos incensam, olhemos a realidade. A maioria vota
com o nariz, sempre no mesmo partido. Depois vêm os
indecisos e flutuantes, que se consideram mais
sofisticados. Esses seguem três hipóteses.
Nas eleições menores, votam com o coração. Europeias
e referendos é onde as razões ideológicas e de
simpatia prevalecem e a abstenção e partidos
pequenos sobem, porque o jogo é a feijões. Mas isso
acaba por ser muito negativo porque essas decisões
são mesmo influentes e nenhuma eleição é de
desprezar. É por isso que o Parlamento Europeu é
grotesco e as escolhas referendárias contraditórias.
Não é provável que isto aconteça nas legislativas,
onde a escolha é a sério. Aí todos se deixam de
análises e doutrinas e votam com o bolso. É a isto
que se chama "voto útil", escolhendo não quem
governa melhor ou defende a ideologia preferida mas
o que menos estragos fará ao interesse particular.
Por isso é que desta vez as coisas estão tão tensas
e incertas: os eleitores acham que qualquer dos
governos plausíveis fará bastante estrago.
Para além destes métodos de voto, só existe mais um.
Nas autárquicas fora dos grandes centros, as pessoas
não votam com o nariz, a cabeça, o coração ou o
bolso, mas com as tripas. Aí as lutas são renhidas e
as paixões intensas, pois todos se conhecem e amam
ou odeiam com ardor. Por isso é que as autárquicas
são as únicas eleições a sério em Portugal, em que a
verdadeira democracia ainda tem hipóteses.