Jornal de Negócios - 29 Out 2010

 

O povo não está com o MFA
Pedro Santos Guerreiro

Para David Schnautz, Portugal é uma linha numa folha de cálculo.

Ontem de manhã, emprestou-nos dinheiro, comprando obrigações da República. Depois, foi surpreendido: afinal não há Orçamento - os juros dispararam. Schnautz sentiu-se enganado. E ironizou, ao Negócios: "Da próxima vez que participar num leilão de dívida de Portugal, é provável que queira cobrar um prémio de juro 'contra todos os riscos'...".

Portugal está nas mãos dos David Schnautzes. Este especialista em obrigações do Commerzbank, em Londres, representa "os mercados": os nossos credores. E nós, os aflitos, que imagem damos? A de um País em derrapagem orçamental alarmante, incapaz de se governar ou sequer de acordar mínimos olímpicos para um Orçamento do Estado. Este dia-sim-dia-não da aprovação do Orçamento é humor negro. Os Schnautzes de Londres podem dizer-nos o que Hamlet disse à mãe: "Inconstância, teu nome é Portugal".

A mãe de Hamlet, Rainha da Dinamarca, casou com o cunhado depois deste lhe matar o marido. O que se segue ao fractidício-regicídio é uma história de loucura e de alianças torpes. Também Portugal tarda em vingar os seus fantasmas, enquanto serve de entrada na Europa a ditadores. Recebemos ministros do Irão, vendemos bancos ao poder de angolanos, abrimos palácios a líbios, mendigamos dinheiro chinês, encomendamos fanfarras a venezuelanos para lhes vender pela segunda vez o que da primeira não nos pagaram. Isto não é "real politik", é carência e aflição. Tem de ser. O que custa é perceber como os mesmos que são tão fáceis para negócios exteriores se façam tão difíceis para acordos internos.

Os portugueses trabalham para pagar impostos e Portugal vive para pagar dívidas. Não estamos aqui para crescer, expandir, lucrar, investir; estamos a contrair, cortar, pagar, desendividar - estamos a destruir economia. Ou, nome técnico, estamos a entrar em recessão.

Quando José Sócrates e Passos Coelho saem de Portugal, como saíram ontem, ficam imediatamente lúcidos. "Os mercados", Angela Merkel e Durão Barroso não precisam de fazer mais do que levantar o sobreolho para fazer corar de vergonha quem insiste em ignorar os saltos do sismógrafo.

Chamar o FMI é uma rendição. Mas é, também, perdição. Porque os credores nunca estão interessados em salvar quem lhes deve dinheiro, mas em recuperar a dívida. Podemos vociferar contra a Alemanha e dizer que nos deram o euro para o gastarmos a comprar-lhes produtos, mas isso não serve de nada. Toda a política comercial externa da União foi concebida a pensar na Alemanha, foi daí que no passado surgiu a pressão da abertura à China, como é daí que surge hoje a pressão para que a China valorize a sua moeda e passe a comprar (e não apenas vender) produtos à Europa. Foi a Alemanha que nos vendeu os automóveis com que nos endividámos e os submarinos com que submergimos. Mas a cabeça é nossa. Para pensar ou para a perder. Que sirva de lição: é cada um por si e nós por nós.

Se Portugal persistir nesta balbúrdia política, teremos um FMI, não um MFA. E o FMI vem a pedido dos devedores com mandato dos credores. A proposta alemã de retirar o voto na União a países que peçam auxílio financeiro não vai passar, é apenas a debulhadora para abrir caminho à discussão. Mas mesmo sem esse radicalismo, vamos perder autonomia. Portugal não é uma empresa, é um País. Um país sem Hamlet, sem rainha, sem rei nem roque. "Há algo de podre no reino da Dinamarca."