Da vida para lá do deficit à ditadura das
finanças
Helena Matos
Ditadura porque tomou conta das nossas vidas,
porque, em seu nome, somos privados do que
julgávamos adquirido
Enquanto escrevo, vou vendo os mineiros chilenos
saindo da mina de San José. Para lá da imensa emoção
de ver chegar ao fim o calvário daqueles homens,
senti inveja quando vi as imagens do filho de
Florencio Avalos, o primeiro mineiro a ser
resgatado, com um balão com a bandeira do Chile
gravada e de Mario Sepúlveda, o segundo homem a sair
da mina, a gritar "Viva Chile". E senti inveja
porque alguém nos roubou o orgulho e a alegria de
sermos portugueses.
Por razões que a História explica mas não desculpa,
em Portugal, os símbolos do país e os seus feitos
ficaram reféns dos regimes. Foi preciso que um
brasileiro se tornasse seleccionador nacional para
que pegássemos na bandeira sem temermos que
pensassem que éramos isto ou aquilo. Orgulharmo-nos
da viagem do Vasco da Gama, da capacidade
empreendedora demonstrada em África pelos
portugueses ou da solitária decisão de Aristides
Sousa Mendes implica passar o restante tempo a ter
de se provar que não se é isto ou aquilo.
Esta incapacidade de dissociarmos o país do Governo
dá aos governos um ascendente que em muito
ultrapassa não apenas o que deve ser o seu âmbito
mas também o seu lugar. Portugal só nos chega nos
momentos em que já não se pode iludir as crises e há
que pedir ao povo que faça sacrifícios. Nos outros
dias, apenas se fala de Governo: o Governo quer, o
Governo decide, o Governo aprovou...
As elites e as corporações fazem revoluções em nome
do povo. Governam para a sociedade. Mas, quando tudo
corre mal, invocam a palavra Portugal para que o
povo mais uma vez faça o que é necessário por
Portugal. E o povo faz. Seja engolindo em seco
enquanto os seus filhos combatem num mapa longínquo,
seja procurando sobreviver no meio da loucura
legislativa que as elites aprovam, seja empobrecendo
através de impostos que pagam as dívidas que alguém
contraiu em nome do seu país.
Nunca em Portugal as elites prestam contas ao povo
dos resultados do que lhe pedem. O mais que fazem é
promoverem mudanças de regime em que acusam os
anteriores governantes de terem enganado o povo.
Não é simples coincidência que, na nossa História do
século XX, as mudanças tenham nascido de revoluções
e não de transições: não só as revoluções são bem
mais fáceis de fazer do que as transições como têm
para os seus protagonistas a extraordinária vantagem
da desresponsabilização.
Nos regimes instituídos em 1910, em 1926 e em 1974,
encontramos sempre não só o lavar de mãos dos novos
governantes sobre as responsabilidades quanto ao
passado como a recorrente invocação dos desmandos
dos governantes pretéritos para justificar os
falhanços dos governantes do presente. O povo, esse,
é que é sempre o mesmo. E, assim, antes sequer de
ter tempo de perceber o resultado dos sacrifícios
que lhe foram pedidos pelos afastados do poder, já
se está a preparar para fazer os sacrifícios que os
novos governantes lhe estão a pedir. Sendo que o
pedir, nesta matéria, é um eufemismo, pois, perante
a gravidade das situações, o povo sabe bem que não
pode dizer "não". Quando finalmente, no desencanto
das revoluções, as crises se impõem, as elites
viram-se para o povo e pedem-lhe sacrifícios em nome
de Portugal. Pois sabem que, se pronunciarem essa
palavra, "Portugal", não só o povo não lhes pedirá
muitas explicações como também sabem que não haverá
tempo para que alguém lhes pergunte: o que andaram a
fazer até agora?
Em 2010, o problema das elites é que agora não podem
fazer uma revolução. E, na ausência do providencial
ruído gerado pelas revoluções, sabem que essa
pergunta acabará por ser colocada. Arranjar um bode
expiatório é a saída que lhes resta. Primeiro foram
os "bota-abaixistas" que não percebiam a realidade
maravilhosa do país. Depois os mercados que não
conheciam a nossa realidade e que se obstinavam em
nos atacar. Agora é o Passos Coelho.
Se esses 33 mineiros da mina de San José ou outros
quaisquer regressados à contemporaneidade tivessem,
de repente, acesso às notícias sobre Portugal,
ficariam convencidos que este país é governado por
um homem chamado Passos Coelho. Um homem
poderosíssimo, pois, a acreditar nos jornais,
televisões, rádios e demais forças vivas do país,
nas suas mãos está o destino de Portugal: dele, em
exclusivo, depende que Portugal tenha um Orçamento
de Estado. E desse Orçamento de Estado depende a
soberania do país: o sim ou o não de Passos Coelho
ao Orçamento coloca-o, em 2010, entre a presciência
de D. Afonso Henriques quando assinou o Tratado de
Zamora ou a irresponsabilidade megalómana de D.
Sebastião quando partiu para Alcácer-Quibir.
Tais desproporção e distorção da realidade são um
sinal do nosso desespero. E, sobretudo, do desespero
de quem nos governa, entendendo aqui por quem nos
governa não apenas o grotesco psicodrama dos
governos de Sócrates mas toda essa classe de
ministros, ex-ministros, governadores, consultores,
presidentes disto e daquilo, reguladores, etc... etc,
que, ao longo dos anos, nos têm garantido que estava
tudo bem, que a sociedade ia ser a cada ano mais
justa, mais solidária, mais igual... Agora, na hora
de nos dizerem que a cascata das contas de somar com
que fizeram campanhas eleitorais e se legitimaram no
aparelho do Estado afinal só deu menos - sem
crédito, seremos menos país, nós vamos ter menos do
que já tivemos e os nossos filhos menos ainda -,
querem fazer-nos acreditar ainda que existe uma
solução miraculosa: aprovar um Orçamento em Outubro
de 2010.
Esta ilusão é tão patética quanto aquelas outras em
que nos andámos a embalar e que José Sócrates é
exímio a vender. Se fosse tão fácil assim convencer
os mercados da nossa capacidade de honrar os
compromissos nós teríamos mais crédito do que a
Suíça, pois Orçamentos aprovados, com contas
maravilhosas lá inscritas, é o que não tem faltado a
Portugal nos últimos anos. O problema é que esta
derradeira ilusão não nos pode tornar apenas mais
pobres como todas as anteriores mas também menos
democráticos caso se insista na tese de que o
Orçamento tem de ser aprovado a qualquer custo e
independentemente do que lá estiver inscrito.
Em primeiro lugar, os portugueses têm direito a que
o seu Orçamento lhes seja explicado e que seja
discutido. Porque são os portugueses que têm de o
pagar. Tal como são os portugueses quem tem de pagar
as consequências funestas dos anteriores Orçamentos
aprovados com tanta concórdia pela classe política.
Assim, aos portugueses resta-lhes agora exigir que
este Orçamento seja o melhor possível. E isso só se
consegue com discussão e negociação, não com
chantagens e dramatizações.
Em segundo lugar, e muito mais importante no nosso
sistema político, aprovar, viabilizar ou chumbar um
Orçamento faz parte dos poderes dos partidos com
representação parlamentar. Logo, tal como Passos
Coelho e o PSD devem ser responsabilizados pelas
opções que tomarem em relação a este Orçamento -
nomeadamente, avaliando-se se as condições que
propõem para o viabilizar são aceitáveis pelo
Governo e positivas para o país -, também o Governo
e o PS têm de ser responsabilizados pela forma como
aceitam ou rejeitam negociar. Quando, em 2009, José
Sócrates se candidatou a primeiro-ministro, não
exigiu maioria absoluta. Desde Setembro do ano
passado que sabe que tem de negociar os Orçamentos.
Acredito que não será bom para o país não ter um
Orçamento rapidamente aprovado, mas saem-nos mais
caras ainda quaisquer tentativas de saltar etapas
das regras da democracia tentando trocar este debate
sobre o Orçamento por anúncios prévios de acordo,
veto ou demissão.
Afinal, seis anos depois de Jorge Sampaio, então
Presidente da República, ter declarado que há vida
para lá do deficit, podemos confirmar que, de facto,
existe vida para lá do deficit. Chama-se ditadura
das finanças.
Ditadura porque o deficit atingiu tal ponto que não
permite que pensemos noutra coisa ou que tenhamos
outras prioridades que não sejam controlá-lo.
Ditadura porque tomou conta das nossas vidas.
Ditadura porque, em seu nome, somos privados do que
julgávamos adquirido. E ditadura porque,
invocando-o, se tenta questionar o próprio
funcionamento do regime.
A vida para lá do deficit não só é muito difícil
como não se recomenda. Ensaísta