Expresso - 07 Out 06

Clínicas à espreita

Alexandra Teté – Associação Mulheres em Acção

Foi noticiado que o Governo se prepara para licenciar a operadores privados a realização de abortos pagos pelo SNS, logo após o próximo referendo. Para que finalmente se “cumpra a lei”.  

Esta alegação é infundada e perversa. O relatório da D.G. da Saúde sobre a “Avaliação do grau de cumprimento da lei da IVG”, de Setembro de 2005, revelava que a legislação se tem concretizado “de forma cada vez mais adequada”, com a ressalva das situações fundamentadas em grave ou duradoura lesão para a saúde psíquica da mãe, “cujo entendimento é bastante controverso”. Neste caso, o procedimento actual seria, supostamente, “insuficiente e insatisfatório face às necessidades das mulheres, a fazer fé nos números correntemente referidos, das que recorrem a clínicas espanholas ou ao aborto clandestino”. Note-se contudo que, neste ponto, o Relatório passa para o domínio do boato e da propaganda. O que é que a D.G. da Saúde pode dizer das “necessidades das mulheres”? Como é que isso se relaciona com o cumprimento da lei?  

Aliás, de acordo com esse relatório, “parece ser significativo e de realçar o facto de que no âmbito da IVG nunca houve, por parte das mulheres, a apresentação de qualquer tipo de queixa, (...) enquanto que o mesmo não se tem verificado em outras áreas de prestação de cuidados, onde as reclamações por dificuldade de acesso, negligência ou má prática atingem um número elevado de casos”. Tudo indica, portanto, ser falso o lugar comum de que a lei não está a ser cumprida. 

Mas, além disso, como é que se pode esperar que a lei seja mais rigorosamente observada pelas clínicas privadas? Todos sabem quão elásticas e manipuláveis são as razões psíquicas e quão laxa, negligente e abusiva é a sua interpretação nessas clínicas. A subcontratação de operadores privados tem, obviamente, um elevado risco moral, porque essas clínicas têm um interesse próprio (o seu lucro) numa interpretação flexível da lei. Por outro lado, remete a prática do aborto legal para a opacidade, a coberto da privacidade comercial, e escapa ao escrutínio público e à responsabilidade política directa. 

Enfim, alguém acredita que o Senhor Ministro quer fazer “cumprir a lei”? Se o quisesse, seguiria a sugestão do dito Relatório clarificando o espírito do legislador quanto aos motivos psíquicos, de forma a servir de base de orientação aos médicos na sua prática clínica. Mas não, o Senhor Ministro não se atreve. Prefere as clínicas: são mais “seguras”. E não pode ignorar que essa privatização promove a banalização do aborto, como aconteceu em Espanha, e esvazia o referendo, tornando irrelevante o seu resultado (se ele for Não).

O Governo encerra maternidades, centros de saúde e urgências. Em tudo se pode cortar; no aborto, não!