Num tempo que perdeu referências existe uma
instância que mantém credibilidade universal: a
ciência. A nossa sociedade desconfia de políticos e
sacerdotes, ridiculariza avós e professores,
despreza militares e jornalistas, mas tem fé
inabalável em experiências, estudos, teoremas. Aliás
exige suporte científico para decisões em todas as
áreas da vida. Por isso são bastante preocupantes os
crescentes abusos do trabalho analítico que se
arriscam a minar a única fonte de verdade que resta
a esta sociedade agnóstica.
A ciência usa métodos rigorosos e sistemáticos que
no seu campo garantem conhecimento objectivo e
sólido. Mas seguindo a via epistemológica é preciso
ir onde o processo conduz, não onde se escolhe.
Demonstra-se o que se pode, não o que se quer. Os
resultados nem sempre são convenientes, oportunos,
pragmáticos. Assim é inevitável que a ciência, sendo
inestimável, não baste para conduzir a humanidade,
que também precisa de tradição, ideologia, valores,
espiritualidade. Tudo aquilo de que o nosso tempo
pagão suspeita.
Mas se acreditamos apenas nas teorias, é preciso
usá-las, a bem ou a mal. Muitos decisores,
interesses e forças de pressão escondem as suas
convicções atrás de modelos parciais, teoremas
incompetentes, afirmações indemonstradas, resultados
distorcidos. Apela-se à ciência a propósito e fora
dele, sem contexto nem rigor.
As ciências sociais, batidas no fragor do combate
político, são conhecidas pela variedade e
insegurança das respostas. O mesmo começa a suceder
nas disciplinas supostamente exactas. Basta
acompanhar os grandes debates da actualidade para
ver como há estudos e especialistas para todos os
gostos. Nas grandes obras públicas a situação
atingiu o caricato. O TGV e o novo aeroporto já
viram justificações indiscutíveis de peritos
eminentes em todos os sentidos possíveis. Surpreende
como ainda têm credibilidade.
O aquecimento global, tema do momento, parece
esquentar mais os especialistas que a atmosfera. Os
dados-base são conhecidos, mas a sua interpretação é
múltipla. Em 2006 Al Gore publicou o manifesto An
Inconvenient Truth: The Planetary Emergency of
Global Warming and What We Can Do About It (Rodale
Press), que se pretendia científico e fez soar o
alarme. No ano seguinte Bjørn Lomborg apresentou
Cool It: The Skeptical Environmentalist's Guide to
Global Warming (Cyan 2007), aconselhando calma. Pode
dizer-se que são casos extremos, mas Brian C.
O'Neill, um dos maiores especialistas do tema,
reagindo a ambos os livros confessou: "O nicho de
mercado para uma investigação equilibrada da
importância relativa das mudanças climáticas ainda
está em aberto" (Population and Development Review
34: 259-362). Se é assim, como se podem apregoar
certezas incontestáveis e avançar com medidas
drásticas?
Também na medicina a pressão político-social gera
mudanças suspeitas. A melhor forma de combater a
sida é evidentemente uma alteração de comportamento
sexual evitando promiscuidade. Só que os médicos,
que não se importam de impor as limitações mais
dolorosas aos doentes noutras áreas, aqui preferem
evitar polémicas e falam de preservativo. Será por
motivo profiláctico ou mediático? Pode até dizer-se
que, promovendo o deboche, esses conselhos fomentam
a maleita.
Também a homossexualidade, que sempre foi
considerada uma doença do foro psiquiátrico pelos
especialistas, deixou de o ser em 1973 na Associação
Americana de Psiquiatria e em 1981 na OMS. Foram
novas investigações incontestáveis e descobertas
revolucionárias, ou mera pressão política e
jornalística? A discussão de muitos outros temas, da
gripe A aos transgénicos, passando pela energia
atómica, e radiações de telemóveis ou redes de alta
tensão, sofre do mesmo drama.
Em todos estes casos a verdadeira ciência está
totalmente inocente. Ela segue o seu caminho
paulatino, demonstrando o que pode e garantindo
solidez do que afirma. O mal, que chega a ser
criminoso, é o uso abusivo que supostos utilizadores
e divulgadores fazem dos torturados resultados
científicos.