Quando a esquerda se torna estabelecida, burguesa,
dominante, quem é realmente revolucionário?
No recente debate do casamento entre pessoas do
mesmo sexo, o mais curioso é ouvir dizer que se
trata de um direito fundamental. Alguns põe um ar
grave e afirmam estarem em causa valores básicos.
Mas, se é mesmo tão básico, porque ficou omisso em
trinta e tal anos de democracia? Porque não consta
nos documentos de referência e declarações de
direitos dos últimos séculos? Como é possível os
militantes, que hoje o reivindicam com urgência,
terem- -no esquecido tanto tempo? Mas estas
afirmações, mesmo se caricatas, apontam para um dos
maiores problemas culturais da actualidade.
A luta pela justiça social é o valor supremo da
nossa civilização. Outras épocas e regiões buscavam
a sabedoria, glória, beleza, mas a nossa quer uma
sociedade justa e livre. Todos fomos educados
colocando a equidade no lugar máximo e vendo a sua
busca como imposição definitiva e universal.
Precisamente por isso a nossa sociedade montou
múltiplos mecanismos de protecção, equilíbrio e
compensação que pretendem eliminar a maior parte dos
agravos.
Esse sucesso é a origem do problema. Claro que ainda
permanecem muitas injustiças e discriminações, como
haverá sempre. Mas na nossa cultura sofisticada
estão afastadas as grandes causas, combates
incontroversos, campanhas claras e indiscutíveis.
Nós, que crescemos à sombra dos grandes lutadores
contra o fascismo, racismo, machismo e afins, não
conseguimos igualar esses tempos heróicos.
Por isso pululam os rebeldes sem causa, militantes
desempregados, activistas em busca de quem proteger.
Claro que é fácil encontrar quem precise de defesa e
apoio. Quem quiser combater o mal tem muito a fazer,
como sempre teve e terá. Mas as situações que restam
são simples, rotineiras, menores, próximas. Falta-
-lhes o romance e a dimensão das velhas lutas de
Robespierre, Marx, Pankhurst, Luther King, Mandela,
Xanana.
Pior, as forças que lutavam pela liberdade,
igualdade e justiça estão hoje no poder, vendo-se a
si mesmas dos dois lados. Como protestar contra
ministros, banqueiros e empresários, se são nossos
correligionários? O resultado é a grande crise da
Esquerda, a quem há décadas faltam causas e sobram
remorsos.
As coisas são ainda mais graves porque as razões que
motivam esses generosos movimentos vêm envolvidas em
grande ambiguidade. Nos conflitos actuais de valores
chocam argumentos onde é cada vez mais difícil
determinar o bem e o mal.
Em certos casos, as ideologias conduzem mesmo a
resultados terríveis. Na luta pelo aborto, por
exemplo, os activistas vêem-se cúmplices de um crime
de sangue, com morte de seres humanos. Não há dúvida
que é morte e não há dúvida que é humana. Por muitos
argumentos e elaborações que arranjem, estão do lado
da agressão aos mais fracos entre os mais fracos.
Também a banalização do divórcio foi feita
evidentemente à custa dos desfavorecidos. A lei
facilita a vida a marialvas, adúlteros e
irresponsáveis, deixando desprotegidos as crianças,
mulheres, pobres, idosos. No calor da argumentação
ideológica é possível disfarçar, mas o quotidiano de
sofrimento desafia as falácias dos activistas.
Aliás, como os proletários costumam ser
conservadores na vida e família, a esquerda vê-se
cada vez mais a defender interesses burgueses. Mesmo
agora, no casamento de homossexuais, é difícil
defender que se trata do socorro de classes
desprotegidas, prioridade social, necessidades
essenciais. A retórica repete tiradas bombásticas de
outros tempos, mas a fragilidade, complexidade e
ambiguidade da questão é muito maior.
Existe ainda uma ironia final gritante. Que é mais
corajoso, lutar por causas libertinas que toda a
opinião pública tolera, ou defender os valores
exigentes do casamento, família e vida? Quem são
realmente rebeldes, os membros do Bloco de Esquerda
que a imprensa exalta e os intelectuais apoiam, ou
os que enfrentam as teses politicamente correctas?
Onde está hoje a verdadeira heterodoxia, rebeldia,
atrevimento? Quando a esquerda se torna
estabelecida, burguesa, dominante, quem é realmente
revolucionário?