O primeiro-ministro reiterou que o Governo avançará
com a proposta para permitir o casamento entre
pessoas do mesmo sexo e afastou a hipótese de
referendo, dizendo não aceitar "nenhuma lição de
democracia" (Sol 6/Nov.). Pobre de quem, pela
arrogância da resposta, mostra não entender a
democracia. Mas a resposta é curiosa, porque foi
nestes temas da vida e família que surgiram os
maiores atropelos ao espírito e prática democráticos
no Portugal moderno.
Lembremos que nunca a política desceu tão baixo como
no longo processo que levou ao actual financiamento
público do aborto. A lei da liberalização da prática
foi chumbada no Parlamento por um voto a 20 de
Fevereiro de 1997. Mostrando supino desprezo pelas
instituições, a mesma câmara, depois de substituir
alguns deputados, voltou a votar a mesma lei na
mesma legislatura, aprovando-a a 4 de Fevereiro de
1998 por nove votos. O descaramento foi tal que até
a Assembleia percebeu não poder deixar as coisas
assim e convocou um referendo nacional, que a 28 de
Junho de 1998 rejeitou a lei.
O veredicto era claro e democrático. Mas a
arrogância de quem se julga sabedor e não precisa de
lições nunca respeita a vontade popular. Pior ainda,
ao convocar novo referendo foi decidido que o tema
não ia ser o aborto, acerca do qual já se sabia a
opinião. Toda a discussão em 2007 omitiu a
referência a embriões, gravidez e até hospitais,
para se centrar apenas em... mulheres presas. Quem é
que quer as pobres mães atrás das grades? O
magnífico embuste resultou e a 11 de Fevereiro,
apesar de os votos de rejeição terem aumentado, os
abortistas conseguiram a desejada vitória, que os
levou não a libertar mulheres, porque nenhuma estava
presa, mas a promover o aborto livre e barato.
A experiência eliminou de vez o respeito dos
activistas pelo processo democrático. Nunca mais o
povo foi consultado, usando-se os meios mais
expeditos e manipuladores para atacar as leis mais
essenciais e estruturantes.
Em Julho de 1999, o presidente Jorge Sampaio vetou a
"lei da procriação medicamente assistida", referindo
como razão o insuficiente debate público. Quando o
Presidente Cavaco Silva promulgou a lei revista (Lei
n.º 32/2006, de 26 de Julho) teve de enviar uma
mensagem à Assembleia, manifestando o seu
desconforto. Depois, o Governo decidiu banalizar o
divórcio e Cavaco Silva foi obrigado a devolver o
diploma sem promulgação em Agosto de 2008 com graves
críticas à irresponsabilidade do articulado. Acabou
por promulgar a Lei n.º 61/2008 de 31 de Outubro,
reiterando as críticas em mensagem de 20 de Outubro.
Em Agosto deste ano, o Presidente não promulgou a
lei das uniões de facto (Decreto 349/X), aprovada a
correr no final da legislatura, citando mais uma vez
"a ausência de um debate aprofundado" (Mensagem de
24 de Agosto). Como se vê, o Governo e os seus
correligionários precisam mesmo de lições de
democracia.
Dada a vergonha desta história, é claro que agora,
na questão estrutural da definição do casamento,
nunca admitirão um referendo, sabendo que vão
perder. Só o fariam se tivessem uma coisa de que
mostram carecer: vergonha. A recusa baseia-se num
argumento sumamente desonesto: o facto de a proposta
do casamento entre pessoas do mesmo sexo figurar nos
programas eleitorais. Quem o diz sabe bem a
enormidade do que afirma. Os programas não são
menus, em que se possa escolher o que se gosta e
rejeitar o resto. Os votos numa lista nada informam
sobre a opinião em rubricas concretas. O mais
elementar bom-senso e respeito democrático
recomendariam uma ponderação cuidada na mudança de
uma lei tão fundamental. Mas bom-senso e respeito
democrático foi o que mostraram não ter neste tema
há décadas.
As gerações futuras censurarão asperamente a nossa
pelas terríveis infâmias legais cometidas contra a
vida e a família. A apatia e comodismo generalizados
merecem bem o repúdio. Mas não podemos esquecer
também as enormes manipulações, fraudes e
indignidades do processo que, sem desculpar a
cumplicidade passiva, mostram bem a baixeza dos
ataques.