Público - 07 Nov 07

Depois do fim
Rui Ramos

Induzir a culpa pedagógica, mais do que o medo, foi sempre o objectivo da literatura apocalíptica.

Entrámos no século XXI predispostos para o apocalipse. No primeiro dia, houve logo quem esperasse uma devastação provocada pela suposta incapacidade dos computadores para registar a nova data. Depois, foi a vez dos militantes do islamismo radical aparecerem como agentes do fim do mundo. Mal se percebeu que Bin Laden poderia ficar por massacres localizados, logo o clima tomou o seu lugar. Aguardamos agora que secas e inundações nos arrastem à extinção. E para o caso da meteorologia desiludir, já temos em carteira a gripe das aves. Passámos a viver num mundo que está para acabar. Nas discussões políticas, não há hoje proposta, por mais ínfimo que seja o seu alcance, que não nos seja vendida como o único meio de evitar o colapso iminente da nossa prosperidade ou segurança. O abismo espreita-nos por todo o lado.

Não é por isso uma coincidência, mas um sinal dos tempos, que dois dos mais venerados escritores em actividade tivessem escolhido matéria apocalíptica para os romances que publicaram no último ano. Aconteceu a Cormac McCarthy e a Jim Crace. E vale a pena falarmos dos seus livros. Respectivamente em The Road (já em português) e The Pesthouse, McCarthy e Crace imaginaram uma América desolada, de que os sobreviventes tentam fugir. Os livros não são iguais: McCarthy partiu do aniquilamento da natureza, e Crace, do desaparecimento da tecnologia. No primeiro, não há céu, plantas ou animais; no outro, não há máquinas. De resto, em ambos faltam o Estado e a autoridade pública, e as cidades e estradas estão reduzidas a ruínas assombradas por gangs violentos e cultos excêntricos.

Durante dias, depois de acabar a leitura, não consegui abrir o frigorífico ou acender a luz sem experimentar um vago remorso. Induzir a culpa pedagógica, mais do que o medo, foi sempre o objectivo da literatura apocalíptica. Nem McCarthy nem Crace descrevem as origens da destruição em que vegetam os seus personagens. Mas deixam pistas suficientes para suspeitarmos de uma causa moral. Estamos perante os sobreviventes de uma Sodoma e Gomorra. E a partir daqui, o que cada romance desenvolve é de facto uma história de redenção, assente na relação entre pai e filho em The Road, ou, em The Pesthouse, na formação de uma espécie de santa família, a que nem falta o burro da fuga para o Egipto. A ressonância bíblica é demasiado óbvia: o filho de The Road é o cordeiro que tira o pecado do mundo. Há ironia por aqui? Certamente. Mas é também assim que estes relatos de desolação conseguem ser estranhamente animadores. Podemos salvar-nos, se voltarmos a ser inocentes e justos. Depois do fim, vem o princípio.

O catastrofismo em voga quer assustar com fins educativos. Parte do pressuposto de que o futuro está nas nossas mãos, como em tempos esteve nas de Deus. Basta substituir as emissões de carbono pelas emissões de boa vontade, e as guerras pelas operações humanitárias. Gerações antigas souberam que havia, no mundo e nos seres humanos, forças e tendências para além do controle de qualquer ciência ou bom senso. Hoje, tudo o que corre mal é por nossa culpa: a doença deve-se ao estilo de vida, o acidente à imprevidência, e a catástrofe, quando vier, terá a ver com os nossos abusos. O que quer dizer que tudo pode ser evitado e corrigido, se nos arrependermos a tempo. É o evangelho dos caixeiros-viajantes da desgraça. Nos alicerces de tudo isto, está um cristianismo sem Deus, ou melhor, em que a humanidade tomou o lugar de Deus, embora ainda imperfeitamente: já é omnipotente, mas ainda não dispõe da sabedoria divina que terá de extrair do livro de Al Gore ("obrigatório", como diz o anúncio do PÚBLICO). É curioso como é quando denunciamos os nossos excessos que conseguimos ser verdadeiramente excessivos. Tem de ser assim para fazer efeito, dizem os convertidos. Como os velhos pregadores do Inferno.

E por falar de livros de 2007, mencionemos outro: em Black Mass: Apocalyptic Religion and the Death of Utopia, John Gray explica como as utopias laicas do século XX, que reclamavam estar fundadas na ciência, funcionaram como versões seculares das religiões apocalípticas do passado. E acrescenta que o seu fracasso poderá dar lugar ao regresso do original. A revista Economist, a semana passada, dedicou uma dúzia de páginas a esse outro receio em curso. Que fazer? Em The Road, Cormac McCarthy caracterizou com uma frase toda esta literatura e a actual cultura secular do Ocidente: "There is no God and we are his prophets" (p. 143). Deus não existe e nós somos os seus profetas. Como será quando percebermos que também não somos os seus profetas?

Historiador