Público - 21
Nov 06
Prendas
José Vítor Malheiros comentário
Todos os anos é a mesma coisa. Queixamo-nos do
consumismo da data; queixamo-nos da agressão
comercial e da despudorada publicidade destinada às
crianças; queixamo-nos da abundância de prendas que
as nossas crianças recebem - tantas que nem têm
tempo para as desfrutar, tantas que nem conseguem
apreciar as que têm; queixamo-nos do materialismo
que substitui a solidariedade a que a data devia
supostamente ser votada; queixamo-nos das prendas
inúteis que recebemos, compradas só para que o nosso
nome possa ser riscado de uma lista de prendas.
Todos os anos é a mesma coisa mas isso só nos
assalta quando os centros comerciais se enchem dos
enfeites natalícios (no final de Outubro!) e quando
jovens matinais invisíveis começam a atafulhar as
nossas caixas de correio com enormes panfletos
coloridos e indesejados cheios de Pais Natais,
enquanto os canais e os programas infantis explodem
em anúncios.
Pensamos que nada disto é bom, que nada disto é
necessário para os nossos filhos, que não é assim
que os queremos educar, e descobrimo-nos uns dias
antes do Natal mergulhados em mares de gente a
tentar encontrar a última versão da boneca, o último
modelo da consola, a encher caixas com brinquedos e
a embrulhar prendas num frenesim alucinado,
infectados pelo espírito do Natal venal.
Envergonhamo-nos desta girândola de futilidades
enquanto mil milhões de seres humanos vivem com 80
cêntimos de euro por dia, enquanto mais de 4000
crianças morrem por dia por falta de água e de
cuidados básicos de higiene, mas continuamos no ano
seguinte e no aniversário seguinte, depois da
purificação de um suspiro.
E, no entanto, nada disto tem de ser assim. A dádiva
natalícia não tem de ser um estímulo da posse e da
cupidez e o desejo de dar não tem de ser sempre
canalizado para as prateleiras das grandes
superfícies. Há maneiras mais gratificantes de pôr
um sorriso na cara de uma criança.
Há no mercado um número crescente de empresas que
promete oferecer para causas nobres uns cêntimos por
cada compra que fazemos ou uma parte dos lucros que
fizerem em certos produtos. Todas estas iniciativas
são meritórias - ainda que não seja sempre claro se
o fazem por cálculo comercial ou genuína
solidariedade - e isto é certamente algo que podemos
fazer. Mas é possível fazer coisas ainda mais
simples e mais úteis, como evitar submergir os
nossos filhos e os dos outros em brinquedos
supérfluos e dedicar esse tempo e esse dinheiro a
comprar algo verdadeiramente útil para alguém que
verdadeiramente precisa.
Há organismos internacionais e associações
não-governamentais reconhecidas que canalizam
dádivas para crianças necessitadas em todo o mundo e
hoje em dia todas essas dádivas estão à distância de
um clique na Internet. Pode ser dinheiro ou
brinquedos, mas também podem ser oferecidas coisas
tão básicas como livros ou carteiras para a escola,
sapatos ou bibes, mosquiteiros ou... um porco. E
estas dádivas têm a vantagem de poder ser usadas
para presentear também os nossos amigos, pois elas
podem ser feitas em nome de outra pessoa - que
recebe um certificado a dizer que a sua prenda está
nas mãos de uma criança algures no mundo. É evidente
que isto é difícil de explicar a uma criança de três
anos, mas há certamente uma idade a partir da qual
estes presentes serão apreciados. E mesmo que apenas
encontremos oportunidade para fazer uma destas
prendas por ano, isso será melhor que nada.
Os sorrisos podem ficar um bocado mais longe, mas
sabemos que eles são sinceros.
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