Público - 19
Nov 06
Prestar contas
retrato da semana António Barreto
Interessa-me em especial o
sistema educativo. Como tudo na sociedade e na vida,
também este deveria prestar contas. Com uma razão
suplementar: trata-se da maior organização (só
comparável, apesar das diferenças, ao serviço de
saúde), do maior sistema integrado que existe em
Portugal e que não presta contas
Para todos os efeitos, o
Orçamento do Estado encontra-se aprovado. Terminada
a maratona das comissões e dos diferentes sectores,
da qual, como é hábito quando existe maioria, nada
de visível resultou, a aprovação na generalidade é
um simples ritual. O que mais espanta neste momento
único do ano político é a ausência de avaliação, de
exame do que foi feito e de discussão sobre os
resultados. Os governos garantem que estão a fazer
as melhores escolhas e as poupanças necessárias,
enquanto as oposições declararam que seria
necessário gastar mais aqui ou ali, conforme as
simpatias e as preferências políticas. Fazer as
contas ao passado, analisar o que foi gasto, saber
se o ano anterior (que ainda não acabou...) deu bons
ou maus resultados: eis preocupações ausentes. E
mesmo que haja quem se interesse por tal observação
pode perder a esperança: não há dados nem factos que
o permitam. Na verdade, a discussão do Orçamento
serve apenas para aprovar o que se vai gastar, não
serve para prestar contas, muito menos para avaliar
a bondade das despesas futuras. Poder-se-á pensar
que existe também o procedimento da aprovação da
Conta Geral do Estado. Mas esse gesto é totalmente
inútil: ocorre fora do tempo, já não permite retirar
conclusões e a sua aprovação é um pró-forma.
Interessa-me em especial o sistema educativo. Como
tudo na sociedade e na vida, também este deveria
prestar contas. Com uma razão suplementar: trata-se
da maior organização (só comparável, apesar das
diferenças, ao serviço de saúde), do maior sistema
integrado que existe em Portugal e que não presta
contas. Isto, partindo do princípio que prestar
contas significa que tal se faça a alguém ou alguma
entidade que não seja a mesma que a entidade
obrigada. Ora, mais do que outros sectores da vida
pública, os organismos da educação prestam contas a
si próprios. As universidades prestam contas às
universidades. As escolas prestam contas às escolas.
Os professores prestam contas aos professores. E
todos prestam contas, vagamente, ao ministério que é
responsável por todos. Pensar que o ministério
presta contas ao conselho de ministros e este ao
Parlamento é, como se sabe, uma figura de retórica.
A confiança parlamentar pode ser considerada uma
maneira de prestação de contas, mas sabemos que esta
operação se situa num plano político global e
abstracto que não resolve o problema de que aqui se
trata. Um governo pode merecer apoio partidário e
parlamentar, mas o que está em causa não são
entidades concretas, nem organismos reais, muito
menos acções específicas.
Eventualmente, pode aceitar-se a excepção do
Tribunal de Contas. Este órgão ainda consegue
analisar as contas do Estado e de alguns serviços.
De vez em quando, aliás, os seus relatórios e as
suas sentenças são de excepcional valor. Mas sabemos
que as competências deste tribunal superior são
deliberadamente limitadas. Mesmo se, recentemente, o
TC conseguiu alguns notáveis melhoramentos, que lhe
permitem melhor desempenhar as suas funções. O
Tribunal de Contas está proibido de avaliar os
resultados e de analisar os fundamentos das escolhas
e dos objectivos.
Prestar contas não é apenas mostrar as despesas e as
receitas, assim como a respectiva honestidade ou
falta dela. É também mostrar o que se faz e o que se
não faz. Se se fez bem ou mal. Se se fez tudo o que
deveria ser feito ou não. Se os resultados são os
previstos ou perversos. Se, da acção de um organismo
público, resulta melhoria para a população e o país,
ou se, pelo contrário, nada de bom acontece ou as
situações pioram. Prestar contas equivale a ser
avaliado em todos os aspectos da acção e da gestão.
Tem de se mostrar o que se gastou, onde, como,
porquê e quanto.
Nas universidades, não se presta contas ao país, nem
aos órgãos democráticos legítimos. Como também não
se presta contas às empresas, às sociedades
profissionais ou às comunidades locais. Os
dirigentes universitários prestam contas ao
ministro, que deles tem a tutela, isto é, que por
eles também é responsável. O que quer dizer que se
trata de um processo em circuito fechado. Além
disso, os dirigentes prestam contas a si próprios,
aos seus colegas professores e, para serem eleitos
periodicamente, aos funcionários e aos estudantes.
Nas escolas básicas e secundárias, o panorama é o
mesmo. Uma escola, cada escola, não presta contas
aos pais dos alunos, muito menos às comunidades a
que pertencem. Não presta contas às autarquias, nem
a qualquer outra entidade social ou profissional.
Uma escola responde perante o ministério que sobre
ela tem autoridade. Os erros e os êxitos de uma
escola são os erros e o êxito do ministério. Ninguém
tem o direito ou a possibilidade de intervir,
observar e avaliar. O circuito fechado é a regra na
educação, este pequeno mundo composto de milhares de
escolas, de centenas de faculdades, de milhões de
alunos e estudantes, de centenas de milhares de
professores e de milhões de pais, mas que ninguém
avalia a não ser o ministério que por ele é
responsável. Em teoria, o ministério presta contas
ao Parlamento, mas esse processo é absolutamente
inútil. Não só porque ali apenas conta a confiança
partidária, mas também porque prestar contas, por
atacado, por milhares de escolas, é um procedimento
inconsequente.
E não se diga que as escolas preStam contas aos
alunos. Não é verdade. As leis actuais, que permitem
aos alunos de 12 anos de idade criar associações
para debater com os professores e as direcções a
qualidade do ensino e a gestão das escolas, são leis
imbecis e demagógicas que, literalmente, só uma
opereta permitira. Quanto aos níveis superiores de
ensino, aquilo de que se trata é simplesmente uma
regra política essencial: os professores que querem
ser eleitos dão aos estudantes o que eles querem.
Além, evidentemente, de criticar o ministério.
NADA MUDA SÓ POR MOtivos interiores. Não há
melhoramento sem intervenção exterior. Ninguém se
reforma se a isso não for obrigado por entidades sem
interesse directo na conservação. Quem presta contas
a si próprio está no caminho da corrupção ou do
desperdício. Quem governa, ministro, reitor,
director ou professor não pode ser juiz em causa
própria, muito menos fiscal. Eis regras básicas que
tornariam bem mais saudável a vida pública nacional,
mas que são absolutamente ignoradas no nosso país.
Ora, enquanto as escolas não prestarem contas a
entidades autárquicas, às comunidades e aos pais; e
enquanto as universidades não prestarem contas a
entidades civis, profissionais, científicas e
culturais; podemos ter a certeza de que os
orçamentos são mal gastos, que a irresponsabilidade
reina e que a impunidade é a regra. E podemos estar
seguros de que o desperdício de recursos é colossal.
E que os esforços de reforma são inúteis.
A verdade, todavia, é que parece ser isso o que os
portugueses querem. Muitos, pelo menos.