A desumanidade da sociedade civil
António Barreto Retrato da Semana
As vantagens, que são muitas, da cidadania laica
e do Estado de protecção social não incluem a
humanidade
Por razões de ordem pessoal, tive recentemente de me
ocupar de questões ligadas à assistência aos
desfavorecidos e à protecção de populações em risco.
Entre estas, podem contar-se os idosos
(especialmente sozinhos e doentes), crianças
abandonadas, filhos de pais doentes, refugiados,
vítimas de violência doméstica, pobres, certos
desempregados, doentes acamados, pessoas sem abrigo,
viciados, drogados, hospitalizados com parentes
ausentes, presos e outros. Num vasto universo de
organizações civis e não--governamentais que se
dedicam ao apoio e ao conforto destas pessoas,
encontrei ou tomei conhecimento da existência de
milhares de voluntários que gastam, por dia, mês ou
ano, horas sem fim com aqueles que assistem. Além do
tempo de trabalho, que não é pouco, gastam também
recursos pessoais.
Mais do que tudo isso, o esforço e a energia destas
pessoas, em certas circunstâncias, são
impressionantes. Quando vemos grupos de rapazes e
raparigas a recolher alegremente géneros nos
supermercados, podemos sempre pensar que existe algo
de lúdico associado à generosidade. Mas esses são
momentos excepcionais. O essencial da assistência e
da solidariedade é muito mais difícil. O contacto
humano com acamados idosos ou doentes terminais
exige resiliência moral. Trazer, durante a noite,
alimentos e uma palavra aos toxicodependentes e aos
sem-abrigo, frequentando os locais mais esquálidos e
infectos das cidades, implica um difícil
despojamento dos códigos de comportamento
estabelecidos. Levar água, pão e medicamentos a
crianças doentes e esfomeadas nas áreas miseráveis
onde se desenrolam guerras civis de enorme crueldade
pede sacrifício e capacidade para correr riscos de
vida. Visitar, todas as semanas, por vezes todos os
dias, presos ou doentes, sempre em ambientes de dor
ou de degradação física e moral, não é um gesto ao
alcance de todos. Esta assistência, voluntária, sem
remuneração, recompensa ou visibilidade, é uma das
reservas de decência na nossa sociedade muito mais
interessada na mercadoria ou na exibição.
Ao estudar estas actividades, dei-me conta de que a
maior parte das organizações e dos voluntários tem
uma qualquer inspiração religiosa. São grupos e
entidades ligados às Igrejas (em Portugal, sobretudo
a católica), às ordens, às comunidades religiosas,
às paróquias e a outras instituições. Notei algumas
de inspiração laica, movidas pela mais simples
solidariedade, mas são a minoria. Conheci mesmo
voluntários ateus ou agnósticos que se dedicam a
esta acção com os grupos religiosos, pois os
consideram mais eficientes e mais genuínos. Fica-se
com a impressão de que a segurança organizada e o
reconhecimento do direito de todos à protecção não
substituem, nem de longe, a assistência humana e
pessoal ou, mais simplesmente, o "amor ao próximo"
em nome de um deus. As vantagens, que são muitas, da
cidadania laica e do Estado de protecção social não
incluem a humanidade, a decência e a capacidade para
resolver caso a caso as situações individuais. A
solidariedade civil parece não substituir o
sentimento religioso.
Nos últimos anos, por causa da crescente voracidade
da imprensa, mas também graças às tendências de
evolução da sociedade (com maior escrutínio da
actuação pública e maior consciência dos direitos
das pessoas), quase todos os dias surgem notícias
que põem em causa as competências e as funções do
Estado-providência. Violência e assédio a menores
nas instituições públicas estiveram à cabeça da
lista. Menores abandonados às bolandas entre
instituições e tribunais. Crianças desaparecidas ou
abandonadas. Idosos brutalizados pelas famílias ou
pelas instituições. Criminalidade e doença
superiores nas zonas com mais densidade de
populações em risco. Expansão das doenças
contagiosas nas prisões e nas instituições. Em todos
os casos, um traço comum: a falta de prontidão das
agências oficiais, seja dos tribunais, sejam dos
institutos ou serviços especializados. De comum
ainda, a incapacidade de atender as pessoas com
humanidade. Nada de novo. O sentido de humanidade e
a decência, assim como a solidariedade, estão nas
pessoas, não nas burocracias.
"Uma esmola dada a um pobre é mais um dia de atraso
na revolução", terá dito Lenine ou um dos seus
amigos. A esquerda (na qual incluo todas as espécies
ditas racionalistas, republicanas, laicas,
socialistas ou comunistas) viveu sempre em combate
contra a caridade. A seu favor, fica o papel crucial
que desempenhou no reconhecimento dos direitos
sociais e da igualdade entre todos os cidadãos.
Assim como o seu contributo para a criação do
Estado-providência. Mas, a seu desfavor, fica a
desumanização da assistência aos desprotegidos. O
Estado não é eficiente, nem acode rapidamente.
Sobretudo, o Estado não é capaz de trazer o que
muitas vezes é essencial: o apoio humano, o conforto
afectivo e a esperança.
ue o Estado não seja capaz de humanidade, não é para
admirar. Mas que grande parte dos seus técnicos e
funcionários também o não seja, já deixa a desejar.
As instituições parecem feitas para enquadrar e
regulamentar, não para agir individualmente, com a
humana generosidade que, muitas vezes, faz tanta ou
mais falta do que o alimento ou o abrigo. Mais
ainda: nessa enorme constelação de agências de
voluntários, são poucas as organizações e poucas as
pessoas que se dedicam a estas sacrificadas
actividades por mero espírito de solidariedade
laica. Para se dedicarem ao exibicionismo, ao
dinheiro e à competitividade, os laicos entregam ao
Estado as actividades de protecção e de
solidariedade. Pode a sociedade civil distinguir-se
pelas liberdades e pela igualdade. Mas falhou
radicalmente na fraternidade.