Quando acabar o frenesi do combate à desigualdade, à
homofobia e a todas as outras fobias e ismos, o que
sobrará?
A história é breve e leva-nos ao Portugal de Julho
de 1975. O país declarava-se em processo
revolucionário e o MFA desvalorizava o resultado das
eleições burguesas, contrapondo-lhe a dinâmica da
luta de classes. A Igreja Católica não tinha muitas
ilusões sobre o que se seguiria, mas a habitual
passividade da elite católica portuguesa, a par do
receio de se ver conotada com o reaccionarismo, ia
deixando os responsáveis eclesiásticos numa
expectativa cada dia menos tranquila, mas muito
tolhida.
Estava o país nestes transes quando o então bispo de
Aveiro, Manuel de Almeida Trindade, se deslocou a
Roma. Aí, num encontro com outros bispos, foi dando
conta, no tom moderado, quase tímido, que dizem ter
sido o seu, do que se passava em Portugal. Fosse por
que tanta moderação lhe deu que pensar ou por
qualquer outra razão, um dos bispos presentes
perguntou ao bispo português se a Portugal já tinham
chegado os caixões com armas. Ou seja, se os
sectores não comunistas não só já tinham sido
acusados de conspirar contra a revolução como de
nessa actividade conspirativa terem perdido o
respeito pelos mortos, transportando armas em
caixões. O bispo de Aveiro respondeu que sim, que de
facto os caixões com armas, ou, melhor dizendo, o
boato acerca deles, já chegara a Portugal. Ao que o
bispo que o interrogara lhe disse peremptoriamente
"Vá para a rua, já!"
O homem que tão aguerrido conselho deu ao bispo de
Aveiro chamava-se Karol Wojtyla e sabia por
experiência própria que a acusação dos caixões com
armas era recorrente em todos os processos de
conquista do poder pelos partidos comunistas e que
seria isso que ia acontecer em Portugal, caso os
democratas, e entre eles os católicos, não fossem
para a rua defender as suas posições.
Independentemente de Karol Wojtyla ter ou não
operado os milagres que aos olhos dos católicos o
podem tornar santo, era certamente um homem de
grande intuição política e um orador dotado de
invejáveis dotes de persuasão, pois a verdade é que
o bispo de Aveiro, uma vez regressado a Portugal, se
deixou de reservas e foi mesmo para a rua: a 13 de
Julho de 1975 teve lugar em Aveiro a grande
"Manifestação dos Cristãos" e desde essa data o
bispo de Aveiro e boa parte dos dirigentes católicos
não mais saíram da rua até Novembro de 1975. As
manifestações de católicos repetiram-se em Coimbra,
Lamego, Leiria e Braga, tornando-se evidente que a
Igreja não estava com o MFA e muito menos com a
revolução.
Nos últimos tempos tenho-me lembrado não dos caixões
com armas propriamente ditos, se é que eles alguma
vez existiram, mas daquilo que eles representam
enquanto recurso da agitação e propaganda: um
inimigo imaginário que todos os dias é invocado para
manter o povo em constante frenesi. Este, entretido
nessa verdadeira caça aos gambuzinos, não tem tempo
ou sequer a possibilidade de reflectir na catadupa
de actos que estão a ser praticados por aqueles que
detêm o poder. Vistos à distância, seja esta
distância temporal, como acontece com o PREC, ou
geográfica, veja-se o caso das diatribes de Chavez
na Venezuela, estes procedimentos de agitprop são
sempre óbvios e patéticos. Mas para quem vive imerso
neles é como se não houvesse tempo ou
disponibilidade para mais nada.
Em 1975, em Portugal, faltavam bens essenciais, os
serviços públicos funcionavam nos intervalos das
greves, a tropa levava o dia em plenários, milhões
de cidadãos com nacionalidade portuguesa andavam às
voltas em África, mas nada era mais importante que
correr atrás dos fascistas. E todos os dias se
vislumbravam mais fascistas, pese há meses não se
fazer mais nada senão combater os fascistas.
Em 2010, os caixões com armas continuam a andar por
aí. Agora não estão ao serviço do capital, pois o
socialismo de Estado que nos rege precisa
desesperadamente que a actividade privada pague os
impostos indispensáveis quer à manutenção da
mitologia do Estado providência, quer à prosperidade
da oligarquia que faz negócios, gere e manda como se
o Estado fosse coisa sua. Neste PREC contemporâneo a
igualdade nos bens materiais não é assunto que
mobilize as massas, até porque estas foram
percebendo, à sua dolorosa custa, que quanto mais
igualdade lhes prometem, mais pobres ficam. O homem
novo pode ser pobre ou rico, tudo depende da sua
relação com o Estado e não com o capital. O desígnio
da igualdade transferiu-se do capital para o corpo.
E neste novo campo de batalha todos os dias há uma
desigualdade que urge exterminar: a humanidade
deixou de se dividir nos desigualíssimos homens e
mulheres para passarmos todos a pessoas.
Portugal levou os últimos meses pendente desse
enorme combate que foi o do fim da desigualdade dos
homossexuais que não se podiam casar. Agora que se
celebrou o extraordinário cômputo de 18 casamentos
entre pares homossexuais já nos foi anunciado que
vai ser atacada a enorme desigualdade que recai
sobre os casais homossexuais ao não se lhes permitir
que se altere a filiação das crianças de modo a que
estas tenham dois pais ou duas mães. Como boa parte
deste nosso PREC actual é decalcado do espanhol,
nomeadamente a governamentalização e controlo pelos
partidos socialistas no poder em ambos os países das
associações que dizem combater as desigualdades, não
é muito difícil perceber o que aí vem: sob o lema da
Diversidade Afectivo-Sexual a disciplina de Educação
Sexual vai ser palco de inúmeras polémicas nas
escolas sobre o modelo de família que se deve
apresentar às crianças. Como os tempos vão de crise
não teremos por enquanto cursos de masturbação para
adolescentes como aconteceu em Espanha, por sinal
numa das zonas mais pobres daquele país e em que o
desemprego entre os jovens atinge os valores
estratosféricos de 44 por cento. Mas teremos
certamente uma enorme atenção às pessoas transgénero
que agora se descobriu que devem poder mudar de
género por via administrativa.
Nada disto se traduz em mais direitos ou mais
respeito para com estas pessoas, pela mesma razão
por que também não acabámos um país rico em 1975: o
que se pretende não é melhorar a vida das pessoas. É
sim servir-se delas como se torna óbvio quando
alguém um dia cansado de tanta palermice diz em voz
alta aquilo que muitos sussurram. Foi isso que
aconteceu há 35 anos. Em Novembro de 1975, estávamos
nós naquele nunca mais acabar de fascistas, quando o
almirante Pinheiro de Azevedo, ao ser apelidado
fascista pelos operários que cercavam a Assembleia
Constituinte, também ela cheia de deputados ditos
fascistas, se saiu com aquele grito de alma do "bardamerda
mais o fascista" que deu conta do cansaço de um país
onde os fascistas eram ainda mais raros que o
bacalhau e o leite, mas onde a troco de tudo e de
nada se era chamado fascista. Quando, semanas
depois, um golpe militar mandou as armas para os
quartéis, as pessoas para casa e os caixões para os
cemitérios, o que nos sobrava era um país cheio de
gente desejosa de levar uma vida normal e de ser
governada por quem se preocupasse em assegurar um
futuro melhor ao país e ao povo.
Quando acabar o presente frenesi do combate à
desigualdade, à homofobia e a todas as outras fobias
e ismos que nos capturam o tempo e a atenção, o que
sobrará? Infelizmente não creio que desta vez vá ser
tão fácil quanto em 1975. As pessoas e os países
recuperam muito rapidamente das convulsões que põem
em causa os bens materiais. O mesmo não se pode
dizer das medidas de engenharia social que afectam a
família.
As crianças que agora andam para aí quais pioneiros
na capa da Vida Soviética a ilustrar as maravilhas
de terem dois pais, duas mães, apenas pai ou apenas
mãe, a serem exibidas no Arraialito Gay e nas capas
das revistas como sinal exterior das circunstâncias
de vida de quem lhes chama suas como se fossem
objectos, um dia vão perguntar-nos o que andávamos a
fazer neste início do século XXI. Tanto quanto se
sabe, estes ajustes de memória causam dores muito
superiores aos de qualquer PREC e não costumam
sequer dar histórias que gostemos de ouvir e muito
menos de contar.