O que se passa connosco, para sermos tantas vezes
surpreendidos pela realidade?Ao contrário dos exames
do secundário, o comentário da actualidade não está
mais fácil. Ou para ser mais exacto: depende. Há
quem opte - e muito bem - pelo humor: é então uma
questão de ter graça. Mas há também quem queira
interpretar, dar sentido às coisas. É aqui que a
dificuldade deixa de ser só literária. Trata-se
então de submeter os novelos do noticiário à lógica
de uma intriga com princípio, meio e fim - de
descobrir o fio da meada. Nos últimos anos, nunca
tantos estiveram tantas vezes convencidos de terem
na mão o célebre fio. Apenas para descobrirem
repetidamente que não era bem assim. O que se passa
com o mundo? Ou melhor: o que se passa connosco,
para sermos tantas vezes surpreendidos pela
realidade?
Há uma década, o mapa do terreno diante de nós
parecia feito e acabado. Estávamos no "fim da
história" - não no fim dos acontecimentos, mas no
fim das perspectivas: o mundo ia ser sempre o mesmo
dali para a frente. Era uma questão de esperar pelas
próximas vagas de "democracia liberal" e "economia
de mercado". Um dia, nenhum recanto do planeta
estaria privado dos benefícios da assembleia de voto
e do shopping center. O grande risco, segundo os
profetas, era o "tédio" da paz e da prosperidade. O
mundo assentava então nos ombros de uma única "hiperpotência",
aparentemente decidida a não dar descanso aos
tiranos. Lembram-se de Milosevic? Lembram-se das
discussões sobre a conveniência de disciplinar
multilateralmente a "unipolaridade" americana?
Enfim, aderindo ou protestando, estávamos igualmente
seguros. Sabíamos o que estava a acontecer. Mais:
sabíamos o que ia acontecer.
E depois? Sem podermos dizer com certeza quando, o
"fim da história" deu no "choque de civilizações",
as célebres vagas de democracia começaram a esbarrar
no paredão dos "neo-autoritarismos", e da caixa da "unipolaridade"
saltou, subitamente, a "multipolaridade". É verdade
que o preço do petróleo ajudou a dar vida a muitos
cadáveres: na Venezuela, o "socialismo" voltou a
mexer-se; na Rússia, foram os czares, reencarnados
em antigos agentes do KGB. Mas mesmo sem petróleo,
Mugabe pode passear na sua quinta de sangue e
miséria sem receio de alguém lhe marcar viagem só de
ida para a Haia. Entretanto, as revistas da
especialidade dedicam-se agora a debater o "declínio
da América" num planeta cada vez mais chinês e
indiano. Os profissionais do "anti-americanismo"
sentem inesperadamente a ameaça do desemprego. Para
onde é que foi o mundo de há dez anos?
As reviravoltas, de resto, já não precisam de
décadas. Há umas semanas atrás, a crise do crédito
nos EUA e em Inglaterra pôs em festa os últimos
amigos de Alex. Eis as famosas empresas privadas, de
gamela na mão, a fazerem fila para a sopa do Estado.
O papão "neoliberal", depois de trinta anos a meter
medo, tinha finalmente a estaca no coração. Os
comentadores adeptos da velha ordem social davam
abraços uns aos outros. Valera a pena não se
deixarem convencer por Reagan e Thatcher.
Felizes os que puderam aproveitar bem o momento.
Porque não durou. Um dia adormecemos em 1929, no
outro acordámos em 1973. Com os preços dos
combustíveis e dos alimentos a subir e os
camionistas na estrada, a disputar rendimentos pela
força, eis-nos a combater de novo a "inflação". Na
terra dos fantasmas, Milton Friedman fez Keynes
tropeçar mais uma vez.
E não, não é só agora que os tempos são assim,
imprevisíveis e incertos. Em 1930, em My Early Life,
Winston Churchill contrastou o mundo tal como era,
com o mundo tal como lhe tinham ensinado que seria.
Nascido em 1874, Churchill fora educado nas décadas
de 1880 e 1890, quando a "civilização" das
burguesias liberais europeias parecia alastrar pelo
planeta. Os professores prepararam-no para entrar
num século XX de paz, democracia e prosperidade.
Depois da I Guerra Mundial e nos inícios da "Grande
Depressão", entre ditaduras fascistas e comunistas,
era óbvio para Churchill que os seus mestres se
tinham enganado. Escreveu então: "Pergunto-me
frequentemente se alguma outra geração viu
revoluções tão espantosas nos factos e nos valores
como aquelas por que a minha passou. Do que fui
ensinado a acreditar ser permanente e vital, quase
nada durou. E tudo o que me garantiram ser
impossível acabou por acontecer" (adaptação).
Em 1930, Churchill sentiu-se como um estudante a
olhar para o enunciado do exame, e a descobrir, com
horror, que afinal a matéria estudada não saiu. Em
tempos, ele tivera o fio da meada. Sem aviso, a
meada mudou. A realidade não tem por hábito
facilitar a vida. Estejam preparados. Historiador