Público - 02 Jul 08

 

O fio da meada
Rui Ramos

 

O que se passa connosco, para sermos tantas vezes surpreendidos pela realidade?Ao contrário dos exames do secundário, o comentário da actualidade não está mais fácil. Ou para ser mais exacto: depende. Há quem opte - e muito bem - pelo humor: é então uma questão de ter graça. Mas há também quem queira interpretar, dar sentido às coisas. É aqui que a dificuldade deixa de ser só literária. Trata-se então de submeter os novelos do noticiário à lógica de uma intriga com princípio, meio e fim - de descobrir o fio da meada. Nos últimos anos, nunca tantos estiveram tantas vezes convencidos de terem na mão o célebre fio. Apenas para descobrirem repetidamente que não era bem assim. O que se passa com o mundo? Ou melhor: o que se passa connosco, para sermos tantas vezes surpreendidos pela realidade?

 

Há uma década, o mapa do terreno diante de nós parecia feito e acabado. Estávamos no "fim da história" - não no fim dos acontecimentos, mas no fim das perspectivas: o mundo ia ser sempre o mesmo dali para a frente. Era uma questão de esperar pelas próximas vagas de "democracia liberal" e "economia de mercado". Um dia, nenhum recanto do planeta estaria privado dos benefícios da assembleia de voto e do shopping center. O grande risco, segundo os profetas, era o "tédio" da paz e da prosperidade. O mundo assentava então nos ombros de uma única "hiperpotência", aparentemente decidida a não dar descanso aos tiranos. Lembram-se de Milosevic? Lembram-se das discussões sobre a conveniência de disciplinar multilateralmente a "unipolaridade" americana? Enfim, aderindo ou protestando, estávamos igualmente seguros. Sabíamos o que estava a acontecer. Mais: sabíamos o que ia acontecer.

 

E depois? Sem podermos dizer com certeza quando, o "fim da história" deu no "choque de civilizações", as célebres vagas de democracia começaram a esbarrar no paredão dos "neo-autoritarismos", e da caixa da "unipolaridade" saltou, subitamente, a "multipolaridade". É verdade que o preço do petróleo ajudou a dar vida a muitos cadáveres: na Venezuela, o "socialismo" voltou a mexer-se; na Rússia, foram os czares, reencarnados em antigos agentes do KGB. Mas mesmo sem petróleo, Mugabe pode passear na sua quinta de sangue e miséria sem receio de alguém lhe marcar viagem só de ida para a Haia. Entretanto, as revistas da especialidade dedicam-se agora a debater o "declínio da América" num planeta cada vez mais chinês e indiano. Os profissionais do "anti-americanismo" sentem inesperadamente a ameaça do desemprego. Para onde é que foi o mundo de há dez anos?

 

As reviravoltas, de resto, já não precisam de décadas. Há umas semanas atrás, a crise do crédito nos EUA e em Inglaterra pôs em festa os últimos amigos de Alex. Eis as famosas empresas privadas, de gamela na mão, a fazerem fila para a sopa do Estado. O papão "neoliberal", depois de trinta anos a meter medo, tinha finalmente a estaca no coração. Os comentadores adeptos da velha ordem social davam abraços uns aos outros. Valera a pena não se deixarem convencer por Reagan e Thatcher.

 

Felizes os que puderam aproveitar bem o momento. Porque não durou. Um dia adormecemos em 1929, no outro acordámos em 1973. Com os preços dos combustíveis e dos alimentos a subir e os camionistas na estrada, a disputar rendimentos pela força, eis-nos a combater de novo a "inflação". Na terra dos fantasmas, Milton Friedman fez Keynes tropeçar mais uma vez.

 

E não, não é só agora que os tempos são assim, imprevisíveis e incertos. Em 1930, em My Early Life, Winston Churchill contrastou o mundo tal como era, com o mundo tal como lhe tinham ensinado que seria. Nascido em 1874, Churchill fora educado nas décadas de 1880 e 1890, quando a "civilização" das burguesias liberais europeias parecia alastrar pelo planeta. Os professores prepararam-no para entrar num século XX de paz, democracia e prosperidade. Depois da I Guerra Mundial e nos inícios da "Grande Depressão", entre ditaduras fascistas e comunistas, era óbvio para Churchill que os seus mestres se tinham enganado. Escreveu então: "Pergunto-me frequentemente se alguma outra geração viu revoluções tão espantosas nos factos e nos valores como aquelas por que a minha passou. Do que fui ensinado a acreditar ser permanente e vital, quase nada durou. E tudo o que me garantiram ser impossível acabou por acontecer" (adaptação).

 

Em 1930, Churchill sentiu-se como um estudante a olhar para o enunciado do exame, e a descobrir, com horror, que afinal a matéria estudada não saiu. Em tempos, ele tivera o fio da meada. Sem aviso, a meada mudou. A realidade não tem por hábito facilitar a vida. Estejam preparados. Historiador