Público - 23 Jan 08

O Estado Torquemada e a fábula da alheira
José Manuel Fernandes

O presidente da ASAE, tal como o director--geral de Saúde, sente-se bem na pele de novo "grande inquisidor". Mas se cometem excessos, temos antes de olhar para os políticos que fazem leis que visam controlar os mais ínfimos aspectos da nossa vida e, também, da nossa morte

Se um automobilista é mandado parar na estrada por uma Brigada de Trânsito, sabe, por experiência própria, que, se não tiver cometido nenhuma infracção, tem duas hipóteses: ou encontra guardas que apenas estão interessados em fiscalizar os seus documentos, ou tropeça em agentes da autoridade determinados em apanhá-lo em falta. A maioria das vezes caem na primeira categoria, mas quando se encontra alguém que não simpatiza, por motivos insondáveis, com o automobilista, é praticamente certo que este encontrará um motivo qualquer para o multar. Do colete ao triângulo, do estado impecável dos pneus ao funcionamento das luzes, do ruído emitido aos níveis de emissão, dos muitos selos à multiplicidade de documentos que devem acompanhar um automobilista, as hipóteses de um guarda determinado em multar conseguir encontrar um pretexto para o fazer são inúmeras. A lei, ou as muitas e variadas leis destinadas a regular cada pormenor da vida dos cidadãos, colocam-lhe nas mãos um enorme poder discricionário. Está-se dependente do seu humor e da sua boa vontade.
Mas se passarmos daquilo que é experiência de virtualmente todos os automobilistas para o dia-a-dia de todos nós, verificamos que aquilo a que temos vindo a assistir é à intromissão intolerável do Estado em todos os domínios da vida pública e da vida privada.

A tradição é velha. Com Salazar, multavam-se os banhistas, do sexo masculino, que não usassem calções com alças e os isqueiros só podiam ser utilizados "debaixo de telha". Em contrapartida, podiam-se apreciar (para quem as apreciasse) sandes de courato e ninguém pensava em higienizar a produção de Queijo da Serra ou a obrigar os vendedores de salpicão de Vinhais, curtido no fumo, a vestir batas brancas e luvas de plástico.

Agora tudo é tão normalizado, em nome de "direitos" que ninguém pediu que fossem defendidos, que é quase impossível apreciar uma boa maçã, mesmo tendo cuidado para não trincar a lagarta que a atacou, estando antes obrigados a consumir recipientes de água colorida delimitados pela casca de um insípido pêro. O facto de alguns dos melhores pitéus não obedecerem a tais regras de higiene lá tem sobrevivido quando são franceses, espanhóis ou italianos, porque os nossos higienistas ainda são piores que os tristes burocratas de Bruxelas. É por isso que ainda não proibiram as trufas, que são descobertas no subsolo por porcos, os vinhos doces de colheita tardia, elaborados a partir de uvas semiapodrecidas e contaminadas por um fungo, ou ainda os sublimes queijos em cuja massa se mistura, propositadamente, bolor.

Mais fundamentalistas que um Bin Laden de trazer por casa, os novos "cruzados" do nosso bem-estar e os zeladores da nossa saúde não conhecem limites. Assistir a algumas passagens do último Prós e Contras é, por isso, uma lição. Tal como foi muito instrutivo conhecer os argumentos do inefável presidente da ASAE ontem no Parlamento.

Notemos, por exemplo, no que disse sobre os restaurantes e cafés deste país: "Para se cumprirem hoje os regulamentos comunitários como estão na lei, 50 por cento dos restaurantes e cafés não estão aptos", disse, acrescentando que Portugal tem "três vezes mais restaurantes por habitante do que a média europeia", logo estabelecimentos sem "viabilidade económica". O que significa que, depois de terem desaparecido as tabernas e de ser impossível pedir em Mogadouro um jarro de vinho como os que servem em qualquer restaurante de Paris, o polícia dos costumes que gosta de fumar nos casinos (seria interessante saber se foi ele a pagar o bilhete ou se estava lá a convite...) ainda perora sobre a viabilidade dos pequenos estabelecimentos de restauração. Os quais, por certo, terão menos "viabilidade económica" do que um McDonald, supomos.

No fundo, aquilo a que estamos a assistir é a paulatina invasão pelo Estado do que deveriam ser domínios da esfera privada dos cidadãos e a multiplicação de leis labirínticas que permitem a autoridades de tipo policial (e não de mera fiscalização) actuar sem peso, conta ou medida e, sobretudo, sem tutela de um poder autónomo do poder executivo, o poder judicial. Essa "autoridade" pode, sem que nenhum magistrado a controle, mandar encerrar um estabelecimento por ano e meio para, no fim, se concluir que apenas tem de pagar uma multa de 25 euros. Essa "autoridade" e o seu Torquemada (só me ocorre a comparação com o primeiro grande inquisidor de Espanha, o carrasco dos judeus em nome da pureza da moral e dos costumes) não são, contudo, obrigadas a indemnizar o proprietário - e os seus funcionários - cuja vida podem ter destruído.

Resta-nos, por isso, mergulhar nas nossas raízes e recordar como, apesar de todos os "Torquemadas", muitos judeus iludiram as perseguições fabricando... alheiras. Como não podiam comer carne de porco, e ficariam sob suspeita se não tivessem enchidos em casa, criaram esse enchido que, na sua génese, recorria à carne de aves, iludindo assim os delatores e os polícias. Salvaram-se assim muitos cristãos-novos e todos ganhámos a alheira. Por isso só podemos desejar que as queijeiras da Estrela consigam iludir os novos "Torquemadas" e não deixem de criar esses fabulosos queijos que só atingem o patamar do sublime quando amparados pelas mãos nuas, curtidas pelo tempo e à temperatura certa, dessas mulheres que alguém, em São Bento ou em Bruxelas, nunca viu, não conhece e, no fundo, odeia. Até porque não são tão assépticas como uma boa cadeia multinacional de comida de plástico.