O Estado Torquemada e a fábula da alheira
José Manuel Fernandes
O presidente da ASAE, tal como o director--geral de
Saúde, sente-se bem na pele de novo "grande
inquisidor". Mas se cometem excessos, temos antes de
olhar para os políticos que fazem leis que visam
controlar os mais ínfimos aspectos da nossa vida e,
também, da nossa morte
Se um automobilista é mandado parar na estrada por
uma Brigada de Trânsito, sabe, por experiência
própria, que, se não tiver cometido nenhuma
infracção, tem duas hipóteses: ou encontra guardas
que apenas estão interessados em fiscalizar os seus
documentos, ou tropeça em agentes da autoridade
determinados em apanhá-lo em falta. A maioria das
vezes caem na primeira categoria, mas quando se
encontra alguém que não simpatiza, por motivos
insondáveis, com o automobilista, é praticamente
certo que este encontrará um motivo qualquer para o
multar. Do colete ao triângulo, do estado impecável
dos pneus ao funcionamento das luzes, do ruído
emitido aos níveis de emissão, dos muitos selos à
multiplicidade de documentos que devem acompanhar um
automobilista, as hipóteses de um guarda determinado
em multar conseguir encontrar um pretexto para o
fazer são inúmeras. A lei, ou as muitas e variadas
leis destinadas a regular cada pormenor da vida dos
cidadãos, colocam-lhe nas mãos um enorme poder
discricionário. Está-se dependente do seu humor e da
sua boa vontade.
Mas se passarmos daquilo que é experiência de
virtualmente todos os automobilistas para o
dia-a-dia de todos nós, verificamos que aquilo a que
temos vindo a assistir é à intromissão intolerável
do Estado em todos os domínios da vida pública e da
vida privada.
A tradição é velha. Com Salazar, multavam-se os
banhistas, do sexo masculino, que não usassem
calções com alças e os isqueiros só podiam ser
utilizados "debaixo de telha". Em contrapartida,
podiam-se apreciar (para quem as apreciasse) sandes
de courato e ninguém pensava em higienizar a
produção de Queijo da Serra ou a obrigar os
vendedores de salpicão de Vinhais, curtido no fumo,
a vestir batas brancas e luvas de plástico.
Agora tudo é tão normalizado, em nome de "direitos"
que ninguém pediu que fossem defendidos, que é quase
impossível apreciar uma boa maçã, mesmo tendo
cuidado para não trincar a lagarta que a atacou,
estando antes obrigados a consumir recipientes de
água colorida delimitados pela casca de um insípido
pêro. O facto de alguns dos melhores pitéus não
obedecerem a tais regras de higiene lá tem
sobrevivido quando são franceses, espanhóis ou
italianos, porque os nossos higienistas ainda são
piores que os tristes burocratas de Bruxelas. É por
isso que ainda não proibiram as trufas, que são
descobertas no subsolo por porcos, os vinhos doces
de colheita tardia, elaborados a partir de uvas
semiapodrecidas e contaminadas por um fungo, ou
ainda os sublimes queijos em cuja massa se mistura,
propositadamente, bolor.
Mais fundamentalistas que um Bin Laden de trazer por
casa, os novos "cruzados" do nosso bem-estar e os
zeladores da nossa saúde não conhecem limites.
Assistir a algumas passagens do último Prós e
Contras é, por isso, uma lição. Tal como foi muito
instrutivo conhecer os argumentos do inefável
presidente da ASAE ontem no Parlamento.
Notemos, por exemplo, no que disse sobre os
restaurantes e cafés deste país: "Para se cumprirem
hoje os regulamentos comunitários como estão na lei,
50 por cento dos restaurantes e cafés não estão
aptos", disse, acrescentando que Portugal tem "três
vezes mais restaurantes por habitante do que a média
europeia", logo estabelecimentos sem "viabilidade
económica". O que significa que, depois de terem
desaparecido as tabernas e de ser impossível pedir
em Mogadouro um jarro de vinho como os que servem em
qualquer restaurante de Paris, o polícia dos
costumes que gosta de fumar nos casinos (seria
interessante saber se foi ele a pagar o bilhete ou
se estava lá a convite...) ainda perora sobre a
viabilidade dos pequenos estabelecimentos de
restauração. Os quais, por certo, terão menos
"viabilidade económica" do que um McDonald, supomos.
No fundo, aquilo a que estamos a assistir é a
paulatina invasão pelo Estado do que deveriam ser
domínios da esfera privada dos cidadãos e a
multiplicação de leis labirínticas que permitem a
autoridades de tipo policial (e não de mera
fiscalização) actuar sem peso, conta ou medida e,
sobretudo, sem tutela de um poder autónomo do poder
executivo, o poder judicial. Essa "autoridade" pode,
sem que nenhum magistrado a controle, mandar
encerrar um estabelecimento por ano e meio para, no
fim, se concluir que apenas tem de pagar uma multa
de 25 euros. Essa "autoridade" e o seu Torquemada
(só me ocorre a comparação com o primeiro grande
inquisidor de Espanha, o carrasco dos judeus em nome
da pureza da moral e dos costumes) não são, contudo,
obrigadas a indemnizar o proprietário - e os seus
funcionários - cuja vida podem ter destruído.
Resta-nos, por isso, mergulhar nas nossas raízes e
recordar como, apesar de todos os "Torquemadas",
muitos judeus iludiram as perseguições fabricando...
alheiras. Como não podiam comer carne de porco, e
ficariam sob suspeita se não tivessem enchidos em
casa, criaram esse enchido que, na sua génese,
recorria à carne de aves, iludindo assim os
delatores e os polícias. Salvaram-se assim muitos
cristãos-novos e todos ganhámos a alheira. Por isso
só podemos desejar que as queijeiras da Estrela
consigam iludir os novos "Torquemadas" e não deixem
de criar esses fabulosos queijos que só atingem o
patamar do sublime quando amparados pelas mãos nuas,
curtidas pelo tempo e à temperatura certa, dessas
mulheres que alguém, em São Bento ou em Bruxelas,
nunca viu, não conhece e, no fundo, odeia. Até
porque não são tão assépticas como uma boa cadeia
multinacional de comida de plástico.