O estranho caso do "envelope nº 9" não é,
muito longe disso, o primeiro caso que nos põe
de sobreaviso. Mas, mais uma vez, veio
rapidamente ao de cima, correndo o risco de se
tornar dominante, um estranho e persistente
modelo explicativo para justificar abusos desta
natureza
1.Podem apresentar-nos todo o tipo de
justificações, teorias, desculpas, atenuantes.
Podem mesmo querer convencer-nos de que o último
- apenas o último, que já houve outros -
escândalo da devassa da vida privada dos
cidadãos é culpa de um funcionário da PT ou de
um inocente "filtro" informático ou de outra
coisa igualmente técnica e igualmente risível.
Uma coisa é, no entanto, incontornável. As
polícias de investigação andam à solta. A
protecção de dados não é levada a sério. A
verificação das regras mais elementares do
funcionamento de um Estado de direito digno
desse nome parece ter-se transformado numa mera
actividade burocrática para cumprir, mais ou
menos, a letra da lei.
O estranho caso do "envelope nº 9" não é, muito
longe disso, o primeiro caso que nos põe de
sobreaviso. Mas, mais uma vez, veio rapidamente
ao de cima, correndo o risco de se tornar
dominante, um estranho e persistente modelo
explicativo para justificar abusos desta
natureza. E qual é esse padrão? A
responsabilidade é sempre diluída em teorias e
raciocínios mais ou menos especulativos sobre a
quem interessa este ou aquele escândalo (ouvimos
de tudo, desde levar à demissão do
procurador-geral até, pasme-se, levar ao
descrédito da justiça). O próprio escândalo é
sempre minimizado a bem do bem maior de
continuar a dar às polícias a possibilidade de
fazerem o seu trabalho de investigação e de
combate ao crime. Cada sobressalto acaba por
desaparecer sob a capa da necessidade mais geral
de uma reforma global do sistema. Finalmente, a
responsabilidade, como é timbre nacional, acaba
sempre solteira - ou seja, nunca acontece nada,
a não ser mais um eventual inquérito que nunca
chega ao fim, nem tem consequências práticas.
Neste caso, o do "envelope nº 9", estamos a
aproximar-nos mais uma vez da situação em que,
afinal, se fez uma tempestade num copo de água.
Que afinal foi tudo uma sucessão de erros
técnicos. Que afinal nem sequer eram escutas
telefónicas, eram simples registos de
chamadas...
2. Em 2003, ainda no auge do processo da Casa
Pia, algumas personalidades de idoneidade
política e pública indiscutível (por exemplo,
Mário Soares, Freitas do Amaral, Leonor Beleza e
Gomes Canotilho) subscreveram um veemente apelo
a uma reflexão pública sobre a justiça
portuguesa que apontava seis questões essenciais
sobre a conformidade entre as leis e/ou a sua
aplicação e o conceito de democracia liberal
próprio do mundo ocidental.
As seis questões levantadas pareciam
corresponder àquelas que toda a gente de boa fé
e de espírito democrático se colocava a si
própria nesse momento. O recurso abusivo e
generalizado da prisão preventiva, tida como
"medida excepcional" na Constituição portuguesa
mas transformada em instrumento banal de
investigação judicial. A possibilidade de
prolongar a prisão preventiva até à acusação por
um período inimaginável em qualquer democracia
europeia. A interpretação restritiva do
princípio constitucional que dá a qualquer
pessoa privada de liberdade o direito de saber
porquê. A anulação prática da garantia de que
qualquer cidadão tem o direito a recorrer para
uma segunda instância de qualquer decisão dos
tribunais. A violação sistemática do segredo de
justiça, transformando-o numa caricatura que
perverte gravemente o direito dos arguidos a um
julgamento justo, sujeitando-os ao julgamento
mediático sem defesa possível. A facilidade e
amplitude com que a investigação criminal
recorre às escutas telefónicas, numa prática sem
controlo e sem limites compreensíveis, que
"igualiza" tudo e todos. A existência no âmbito
da Polícia Judiciária de um Sistema Integrado de
Informação Criminal sem regulamentação.
O alerta não teve grande efeito e o debate
depressa esmoreceu. Foi reemergindo, aqui e ali,
ao ritmo de revelações da imprensa de mais este
ou aquele procedimento abusivo ou inexplicável.
Nada aparentemente mudou. E cá estamos nós, de
novo, estupefactos, confrontados mais uma vez
com a questão de fundo: parece existir em
Portugal uma grave incompatibilidade entre os
princípios fundamentais de uma democracia
liberal e as leis que regulam a aplicação da
justiça e/ou a forma como são interpretadas ou
aplicadas pelos poderes judiciais.
Na altura, escrevi que, em minha opinião, não
havia complexidade do crime organizado que
justificasse tamanho grau de distorção dos
direitos e garantias fundamentais dos cidadãos.
Que não era possível justificar, por mais
elaborada que fosse a justificação, a destreza
com que qualquer juiz podia determinar a escuta
de um telefonema entre Jorge Sampaio e George W.
Bush ou entre Durão Barroso e Silvio Berlusconi
ou ainda entre Ferro Rodrigues e Tony Blair.
De novo, quais foram as necessidades da
investigação que levaram a solicitar e a
acumular até agora o registo dos telefonemas
(incluindo privados) de mais de 200 pessoas,
algumas detentoras dos mais altos cargos de
soberania? Porque não foram destruídos, quando
se verificou a sua irrelevância para o processo
e quando o processo passou ao domínio público?
Não é uma questão técnica nem sequer é
incompetência. É abuso de poder, é falta de
respeito pelas regras da democracia, é falta de
exigência e de responsabilidade.
3. Podemos agora acrescentar uma lista de
perguntas àquelas que eram formuladas há três
anos. A PT enviou uma lista de chamadas que não
fora pedida oficialmente? Por que razão? Quem na
PT tem acesso livre a tudo? O que faz a PT aos
registos? Ou, por exemplo, qual é o papel da
Comissão Nacional de Protecção de Dados em
relação à PT? Quem controla a forma como a PT
(ou outra qualquer operadora de
telecomunicações) responde às solicitações de
escutas telefónicas ou de registos de
comunicações? Quem controla estes mecanismos de
excepção por parte das polícias de investigação?
Uma entidade absolutamente independente, como
acontece no Reino Unido, para dar apenas um
exemplo?
Em finais do ano passado e na sequência dos
atentados de Londres, a União Europeia adoptou
uma directiva que obriga as operadoras de
telecomunicações a manterem por um ano os
registos das suas comunicações. Portugal vai ter
de aplicar esta directiva. Quem vai
supervisionar a aplicação da nova directiva
europeia, depois de devidamente transposta para
o direito português? Quem é responsável pelo
controlo efectivo da preservação dos dados
individuais não apenas pelos órgãos do Estado,
mas pelas empresa de comunicações ou pela banca?
Quem garante que os dados são destruídos? Quem
verifica essa destruição?
Seria boa altura para responder a algumas destas
perguntas que continuam sem resposta. Se este
caso acabar como os outros, sem que se apurem
responsabilidades e se encontre uma explicação
que não seja para estúpidos ou para desatentos,
então estamos mesmo muito mal. Não apenas quanto
à qualidade da nossa economia, mas quanto à
qualidade da nossa democracia. Jornalista