Público - 17 Jan 06

Cultura democrática
Teresa de Sousa

 

O estranho caso do "envelope nº 9" não é, muito longe disso, o primeiro caso que nos põe de sobreaviso. Mas, mais uma vez, veio rapidamente ao de cima, correndo o risco de se tornar dominante, um estranho e persistente modelo explicativo para justificar abusos desta natureza

1.Podem apresentar-nos todo o tipo de justificações, teorias, desculpas, atenuantes. Podem mesmo querer convencer-nos de que o último - apenas o último, que já houve outros - escândalo da devassa da vida privada dos cidadãos é culpa de um funcionário da PT ou de um inocente "filtro" informático ou de outra coisa igualmente técnica e igualmente risível. Uma coisa é, no entanto, incontornável. As polícias de investigação andam à solta. A protecção de dados não é levada a sério. A verificação das regras mais elementares do funcionamento de um Estado de direito digno desse nome parece ter-se transformado numa mera actividade burocrática para cumprir, mais ou menos, a letra da lei.
O estranho caso do "envelope nº 9" não é, muito longe disso, o primeiro caso que nos põe de sobreaviso. Mas, mais uma vez, veio rapidamente ao de cima, correndo o risco de se tornar dominante, um estranho e persistente modelo explicativo para justificar abusos desta natureza. E qual é esse padrão? A responsabilidade é sempre diluída em teorias e raciocínios mais ou menos especulativos sobre a quem interessa este ou aquele escândalo (ouvimos de tudo, desde levar à demissão do procurador-geral até, pasme-se, levar ao descrédito da justiça). O próprio escândalo é sempre minimizado a bem do bem maior de continuar a dar às polícias a possibilidade de fazerem o seu trabalho de investigação e de combate ao crime. Cada sobressalto acaba por desaparecer sob a capa da necessidade mais geral de uma reforma global do sistema. Finalmente, a responsabilidade, como é timbre nacional, acaba sempre solteira - ou seja, nunca acontece nada, a não ser mais um eventual inquérito que nunca chega ao fim, nem tem consequências práticas.
Neste caso, o do "envelope nº 9", estamos a aproximar-nos mais uma vez da situação em que, afinal, se fez uma tempestade num copo de água. Que afinal foi tudo uma sucessão de erros técnicos. Que afinal nem sequer eram escutas telefónicas, eram simples registos de chamadas...

2. Em 2003, ainda no auge do processo da Casa Pia, algumas personalidades de idoneidade política e pública indiscutível (por exemplo, Mário Soares, Freitas do Amaral, Leonor Beleza e Gomes Canotilho) subscreveram um veemente apelo a uma reflexão pública sobre a justiça portuguesa que apontava seis questões essenciais sobre a conformidade entre as leis e/ou a sua aplicação e o conceito de democracia liberal próprio do mundo ocidental.
As seis questões levantadas pareciam corresponder àquelas que toda a gente de boa fé e de espírito democrático se colocava a si própria nesse momento. O recurso abusivo e generalizado da prisão preventiva, tida como "medida excepcional" na Constituição portuguesa mas transformada em instrumento banal de investigação judicial. A possibilidade de prolongar a prisão preventiva até à acusação por um período inimaginável em qualquer democracia europeia. A interpretação restritiva do princípio constitucional que dá a qualquer pessoa privada de liberdade o direito de saber porquê. A anulação prática da garantia de que qualquer cidadão tem o direito a recorrer para uma segunda instância de qualquer decisão dos tribunais. A violação sistemática do segredo de justiça, transformando-o numa caricatura que perverte gravemente o direito dos arguidos a um julgamento justo, sujeitando-os ao julgamento mediático sem defesa possível. A facilidade e amplitude com que a investigação criminal recorre às escutas telefónicas, numa prática sem controlo e sem limites compreensíveis, que "igualiza" tudo e todos. A existência no âmbito da Polícia Judiciária de um Sistema Integrado de Informação Criminal sem regulamentação.
O alerta não teve grande efeito e o debate depressa esmoreceu. Foi reemergindo, aqui e ali, ao ritmo de revelações da imprensa de mais este ou aquele procedimento abusivo ou inexplicável. Nada aparentemente mudou. E cá estamos nós, de novo, estupefactos, confrontados mais uma vez com a questão de fundo: parece existir em Portugal uma grave incompatibilidade entre os princípios fundamentais de uma democracia liberal e as leis que regulam a aplicação da justiça e/ou a forma como são interpretadas ou aplicadas pelos poderes judiciais.
Na altura, escrevi que, em minha opinião, não havia complexidade do crime organizado que justificasse tamanho grau de distorção dos direitos e garantias fundamentais dos cidadãos. Que não era possível justificar, por mais elaborada que fosse a justificação, a destreza com que qualquer juiz podia determinar a escuta de um telefonema entre Jorge Sampaio e George W. Bush ou entre Durão Barroso e Silvio Berlusconi ou ainda entre Ferro Rodrigues e Tony Blair.
De novo, quais foram as necessidades da investigação que levaram a solicitar e a acumular até agora o registo dos telefonemas (incluindo privados) de mais de 200 pessoas, algumas detentoras dos mais altos cargos de soberania? Porque não foram destruídos, quando se verificou a sua irrelevância para o processo e quando o processo passou ao domínio público? Não é uma questão técnica nem sequer é incompetência. É abuso de poder, é falta de respeito pelas regras da democracia, é falta de exigência e de responsabilidade.

3. Podemos agora acrescentar uma lista de perguntas àquelas que eram formuladas há três anos. A PT enviou uma lista de chamadas que não fora pedida oficialmente? Por que razão? Quem na PT tem acesso livre a tudo? O que faz a PT aos registos? Ou, por exemplo, qual é o papel da Comissão Nacional de Protecção de Dados em relação à PT? Quem controla a forma como a PT (ou outra qualquer operadora de telecomunicações) responde às solicitações de escutas telefónicas ou de registos de comunicações? Quem controla estes mecanismos de excepção por parte das polícias de investigação? Uma entidade absolutamente independente, como acontece no Reino Unido, para dar apenas um exemplo?
Em finais do ano passado e na sequência dos atentados de Londres, a União Europeia adoptou uma directiva que obriga as operadoras de telecomunicações a manterem por um ano os registos das suas comunicações. Portugal vai ter de aplicar esta directiva. Quem vai supervisionar a aplicação da nova directiva europeia, depois de devidamente transposta para o direito português? Quem é responsável pelo controlo efectivo da preservação dos dados individuais não apenas pelos órgãos do Estado, mas pelas empresa de comunicações ou pela banca? Quem garante que os dados são destruídos? Quem verifica essa destruição?
Seria boa altura para responder a algumas destas perguntas que continuam sem resposta. Se este caso acabar como os outros, sem que se apurem responsabilidades e se encontre uma explicação que não seja para estúpidos ou para desatentos, então estamos mesmo muito mal. Não apenas quanto à qualidade da nossa economia, mas quanto à qualidade da nossa democracia. Jornalista

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