Não, o que nos está a acontecer não é normal nem
tolerável
José Manuel Fernandes
Os casos recentes são apenas as últimas cenas de um
pesadelo que se iniciou quando Armando Vara tutelava
a RTP
A 25 de Junho de 2009, José Sócrates jantou com
Henrique Granadeiro na casa de Manuel Pinho. O
chairman da PT informou então o primeiro-ministro
que a compra da TVI pela empresa de telecomunicações
não se concretizaria. No dia seguinte, no
Parlamento, Sócrates anuncia aos jornalistas que se
vai opor a um negócio que, nessa altura, já não
existia. Estranho? Não, como o mesmo Sócrates
explicou quarta-feira: "Do ponto de vista formal, o
Governo não foi informado."
Pronto, e assim está tudo resolvido. Do "ponto de
vista formal" nunca nada aconteceu. A começar pelo
conteúdo das escutas reveladas pelo Sol, pois o
senhor presidente do Supremo Tribunal e o senhor
procurador-geral entenderam não haver indícios de
crime contra o Estado de direito nesses documentos.Logo esses documentos não existem. E tudo o
resto quer-se fazer passar por "normal".
Ou seja, é normal que um ex-jotinha de 32 anos, Rui
Pedro Soares, seja nomeado para a administração da
PT e premiado com um salário anual de mais de um
milhão de euros. É normal que esse "gestor" em
ascensão trate com Armando Vara, um outro "gestor"
de fresca data e socrático apadrinhamento, da compra
da TVI pela PT e discuta com ele e com Paulo Penedos
a melhor forma de afastar José Eduardo Moniz e
acabar com o Jornal de Sexta. É normal que um jornal
propriedade de um "grupo amigo" publique manchetes
falsas para dar uma justificação política e
económica à compra da TVI pela PT. É normal que seja
depois esse "grupo amigo" a comprar a TVI
beneficiando de apoios financeiros do BCP de Armando
Vara e da PT. É normal que, na sequência dessa
aquisição, Moniz deixe a direcção da estação e acabe
oJornal de Sexta.
Se tudo isto é normal, também é normal que o BCP,
que tinha uma participação no jornal Sol, tenha
criado dificuldades de última hora à viabilização
financeira daquele título, quando nele saíram as
primeiras notícias sobre a investigação inglesa ao
caso Freeport. Tal como é coincidência Vara já ser
nessa altura administrador do BCP. Também será
normal que o Turismo de Portugal tenha discriminado
a TVI em algumas das suas campanhas - o mesmo, de
resto, que fez com o PÚBLICO - e que o presidente
desse organismo seja Luís Patrão, o velho amigo de
Sócrates desde os tempos de liceu na Covilhã. Como
normal será Mário Lino, ex-ministro das Obras
Públicas, ter reuniões no ministério com Rui Pedro
Soares quando o seu interlocutor natural é o
presidente da PT. Como Lino disse à Sábado, é assim
quando se conhece muita gente nas empresas. Como
homem bem relacionado não se estranha que tenha
recebido, de acordo com o Correio da Manhã, uma
"cunha" de Armando Vara no âmbito do processo Face
Oculta. No fundo é tudo boa gente.
Mas como todos estas factos padecem de várias "informalidades",
passemos a eventos mais formais, que sabemos mesmo
que aconteceram, que foram testemunhados e até deram
origem a processos na ERC. Como o das pressões
exercidas pelos assessores de José Sócrates para
desencorajarem qualquer referência pelas rádios e
televisões à investigação do PÚBLICO sobre as
condições em que o primeiro-ministro completou a sua
licenciatura. Como o de o Expresso, que rompeu o
bloqueio e prosseguiu com a investigação, ter
sofrido depois um "boicote claro" e "uma hostilidade
total do primeiro-ministro", como escreveu esta
semana o seu director, Henrique Monteiro. Ou como o
das palavras ameaçadoras dirigidas por Sócrates a um
jornalista do PÚBLICO por alturas do congresso em
que foi eleito líder, em 2004: "Você tem de definir
o que quer para a sua vida e para o seu futuro."
Excessos de quem ferve em pouca água? Infelizmente
não. A actuação metódica e planeada sempre foram uma
marca deste primeiro-ministro e dos que lhe são mais
próximos no PS. Por isso, quando Vara teve a tutela
da comunicação social, criou um monstro chamado
Portugal Global que integrava a RTP, a RDP e a Lusa
e nomeou para a sua presidência um deputado do PS,
João Carlos Silva. Pouco tempo depois, caído Vara em
desgraça, seria José Sócrates a conseguir colocar na
RTP o seu amigo Emídio Rangel. Um favor logo
retribuído: na noite eleitoral que se seguiu (e que
determinaria a demissão de Guterres), os únicos
comentadores em estúdio foram o próprio Sócrates e o
seu advogado, Daniel Proença de Carvalho; e na curta
travessia do deserto até ao PS regressar ao poder,
Sócrates pôde ter, a convite de Rangel, um programa
semanal de debate com Santana Lopes. Já
primeiro-ministro apressou-se a propor um conjunto
de leis - estatuto do jornalista, lei da televisão,
lei sobre a concentração dos órgãos de informação -
que se destinavam, segundo Francisco Pinto Balsemão,
a "debilitar e enfraquecer os grupos privados" de
informação - ou seja, os que não dependem do
Governo.
E não, não é verdade estarmos apenas perante
mal-entendidos, excessos pontuais ou uma mera má
relação com as críticas: estamos face a uma forma de
actuar autoritária e que não olha a meios para
atingir os fins. Até porque o que se relatou é
apenas a pequena parte do que temos vivido (vide
caso Crespo).
Da mesma forma não existe nenhuma má vontade
congénita dos jornalistas para fazer de Sócrates,
como lamentou Mário Soares, o primeiro-ministro mais
mal tratado pelos órgãos de informação. O que houve
de novo foi Portugal ter como primeiro-ministro
alguém que esteve várias vezes sob investigação
judicial (por causa de um aterro sanitário na Cova
da Beira, por causa do Freeport), cujo processo de
licenciatura levantou dúvidas e que se distinguiu
como projectista de maisons no concelho da Guarda.
Isto para além de ter mostrado uma tal incontinência
ao telemóvel que somou e soma dissabores em escutas
realizadas noutros processos, como os da Câmara da
Nazaré, da Casa Pia e, agora, no Face Oculta.
Ainda é possível achar que tudo é normal? Ou
porventura desculpável? Só se estivéssemos
definitivamente anestesiados. Jornalista