É arriscado escrever sobre estas coisas. Não
estão na moda
José Manuel Fernandes
Bento XVI é parte da solução, e não parte do
problema, na crise que os casos de pedofilia abriram
na Igreja Católica
Não sou crente. Educado na fé católica, passei pelo
ateísmo militante e hoje defino-me como agnóstico.
Talvez não devesse, por isso, pôr-me a discutir os
chamados "escândalos de pedofilia" na Igreja
Católica. Até porque não sei se, como escreveu
António Marujo neste jornal - no texto mais
informado publicado sobre o tema em jornais
portugueses -, estamos ou não perante "A maior crise
da Igreja Católica dos últimos 100 anos".
Tendo porém a concordar com um outro agnóstico,
Marcello Pera, filósofo e membro do Senado italiano,
que escreveu no Corriere della Sera que se, sob o
comunismo e o nazismo, "a destruição da religião
comportou a destruição da razão", a guerra hoje
aberta visa de novo a destruição da religião e isso
"não significará o triunfo da razão laica, mas uma
nova barbárie". Por isso acho importante contrariar
muitas das ideias feitas que têm marcado um debate
inquinado por muita informação errada ou manipulada.
Vale por isso a pena começar por tentar saber se o
problema da pedofilia e dos abusos sexuais - um
problema cuja gravidade ninguém contesta, ocorram
num colégio católico, na Casa Pia ou na residência
de um embaixador - tem uma incidência especial em
instituições da Igreja Católica. Os dados
disponíveis não indicam que tenha: de acordo com os
dados recolhidos por Thomas Plante, professor nas
universidades de Stanford e Santa Clara, a
ocorrência de relações sexuais com menores de 18
anos entre o clero do sexo masculino é, em
proporção, metade da registada entre os homens
adultos. É mesmo assim um crime imenso, pois não
deveria existir um só caso, mas permite perceber que
o problema não só não é mais frequente nas
instituições católicas, como até é menos comum. Tem
é muito mais visibilidade ao atingir instituições
católicas.
Uma segunda questão muito discutida é a de saber se
existe uma relação entre o celibato e a ocorrência
de abusos sexuais. Também aqui não só a evidência é
a contrária - a esmagadora maioria dos abusos é
praticada por familiares próximos das vítimas - como
o tema do celibato é, antes do mais, um tema da
Igreja e de quem o escolhe. Não existiu sempre como
norma na Igreja de Roma e hoje esta aceita excepções
(no clero do Oriente e entre os anglicanos
convertidos). Pode ser que a norma mude um dia, mas
provavelmente ninguém melhor do que o actual Papa
para avaliar se esse momento é chegado - até porque
talvez ninguém, no seio da Igreja Católica, tenha
dedicado tanta atenção ao tema dos abusos sexuais e
feito mudar tanta coisa como Bento XVI.
Se algo choca na forma como têm vindo a ser
noticiados estes "escândalos" é o modo como,
incluindo no New York Times, se tem procurado
atingir o Papa. Não tenho espaço, nem é relevante
para esta discussão, para explicar as múltiplas
deturpações e/ou omissões que têm permitido dirigir
as setas das críticas contra Bento XVI, mas não
posso deixar de recordar o que ele, primeiro como
cardeal Ratzinger e prefeito da Congregação para a
Doutrina da Fé, depois como sucessor de João Paulo
II, já fez neste domínio.
Até ao final do século XX o Vaticano não tinha
qualquer responsabilidade no julgamento e punição
dos padres acusados de abusos sexuais (e não apenas
de pedofilia). A partir de 2001, por influência de
Ratzinger, o Papa João Paulo II assinou um decreto -
Motu proprio Sacramentorum Sanctitatis Tutela - de
acordo com o qual todos os casos detectados passaram
a ter de ser comunicados à Congregação para a
Doutrina da Fé. Ratzinger enfrentou então muitas
oposições, pois passou a tratar de forma muito mais
expedita casos que, de acordo com instruções datadas
de 1962, exigiam processos muito morosos. A nova
política da Congregação para a Doutrina da Fé passou
a ser a de considerar que era mais importante agir
rapidamente do que preservar os formalismos legais
da Igreja, o que lhe permitiu encerrar
administrativamente 60 por cento dos casos e adoptar
uma linha de "tolerância zero".
Depois, mal foi eleito Papa, Bento XVI continuou a
agir com rapidez e, entre as suas primeiras
decisões, há que assinalar a tomada de medidas
disciplinares contra dois altos responsáveis que, há
décadas, as conseguiam iludir por terem
"protectores" nas altas esferas do Vaticano. A
seguir escolheu os Estados Unidos - um dos países
onde os casos de abusos cometidos por padres haviam
atingido maiores proporções - para uma das suas
primeiras deslocações ao estrangeiro e, aí (tal
como, depois, na Austrália), tornou-se no primeiro
chefe da Igreja de Roma a receber pessoalmente
vítimas de abusos sexuais. Nessa visita não evitou o
tema e referiu-se-lhe cinco vezes nas suas
diferentes orações e discursos.
Agora, na carta que escreveu aos cristãos
irlandeses, não só não se limitou a pedir perdão,
como definiu claramente o comportamento dos
abusadores como "um crime" e não apenas como "um
pecado", ao contrário do que alguns têm escrito por
Portugal. Ao aceitar a resignação do máximo
responsável pela Igreja da Irlanda também deu outro
importante sinal: a dureza com que o antigo
responsável pela Congregação para a Doutrina da Fé
passou a tratar os abusadores tem agora
correspondência na dureza com que o Papa trata a
hierarquia que não soube tratar do problema e pôr
cobro aos crimes.
De facto - e este aspecto é muito importante - a
ocorrência destes casos de abusos sexuais obriga à
tomada de medidas pelos diferentes episcopados.
Quando isso acontece, a situação muda radicalmente.
Nos Estados Unidos, país onde primeiro se conheceu a
dimensão do problema, a Conferência de Dallas de
2002 adoptou uma "Carta para a Protecção de Menores
de Abuso Sexual" que levaria à expulsão de 700
padres. No Reino Unido, na sequência do Relatório
Nolan (2001), acabou-se de vez com a prática de
tratar estes assuntos apenas no interior da Igreja,
passando a ser obrigatório dar deles conta às
autoridades judiciais. A partir de então, como
notava esta semana, no The Times, William Rees-Mogg,
a Igreja de Inglaterra e de Gales "optou pela
reforma, pela abertura e pela perseguição dos
abusadores em vez de persistir no segredo, na
ocultação e na transferência de paróquia dos
incriminados".
Bento XVI, que não despertou para este problema nas
últimas semanas, não deverá precipitar decisões por
causa desta polémica. No passado domingo, durante as
cerimónias do Domingo de Ramos, pediu aos crentes
para não se deixarem intimidar pelos "murmúrios da
opinião dominante", e é natural que o tenha feito:
se a Igreja tivesse deixado que a sua vida bimilenar
fosse guiada pelo sentido volátil dos ventos há
muito que teria desaparecido.
Ao mesmo tempo, como assinalava John L. Allen,
jornalista do National Catholic Reporter, em coluna
de opinião no New York Times, "para todos os que
conhecem a experiência recente do Vaticano nesta
matéria, Bento XVI não é parte do problema, antes
poderá ser boa parte da solução".
Uma demonstração disso mesmo pode ser encontrada na
sua primeira encíclica, Deus Caritas Est, de 25 de
Dezembro de 2005, ano em que foi eleito. Boa parte
dela ocupa-se da reconciliação, digamos assim, entre
as concepções de "eros", o termo grego para êxtase
sexual, e de "ágape", a palavra que o cristianismo
adoptou para designar o amor entre homem e mulher.
Se, como referia António Marujo na sua análise, o
teólogo Hans Küng considera que existe uma "relação
crispada" entre catolicismo e sexualidade, essa
encíclica, ao recuperar o valor do "eros", mostra
que Bento XVI conhece o mundo que pisa.
Por isso eu, que nem sou crente, fui informar-me
sobre os casos e sobre a doutrina e escrevi este
texto que, nos dias inflamados que correm, se
arrisca a atrair muita pedrada. Ela que venha.